A reimaginação da trilha sonora de Journey

Vinicius Yglesias

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Dez anos após o lançamento do videogame Journey, talvez um dos mais importantes games independentes, ou seja, produzido sem o apoio financeiro de grandes desenvolvedoras (cf. ALVES, 2015, p. 68), Austin Wintory, compositor do game, revisita sua música, lançando, em 14 de março de 2022, uma reimaginação da trilha sonora, intitulada Traveler - A Journey Symphony. O lançamento é uma releitura da trilha sonora do game, na qual o compositor se desafia a escrever para os 134 músicos da London Symphony Orchestra e do coro London Voices uma nova versão da trilha, que flua de maneira independente das necessidades do game e sem o apoio de sintetizadores. Essa decisão foi uma maneira de atender aos anseios de diversos jogadores que entraram em contato com o compositor dizendo que gostariam de poder experienciar o game pela primeira vez novamente.


Traveler também possui comentários do compositor que destacam os desafios de trazer a música de Journey para um novo formato. Com a transformação da música interativa, que se altera de acordo com os comandos do jogador (SWEET, 2015, p. 76), em música linear, a relação entre a trilha sonora e a arte visual, narrativa e mecânicas do game deixa de estar em primeiro plano para, fora de seu contexto, ser retrabalhada como uma obra individual, independente do game. Essa reimaginação não só apresenta novos desafios, mas também abre novas possibilidades a serem exploradas, e passar por algumas dessas mudanças do ponto de vista do próprio compositor nos dá a oportunidade de observar de maneira mais aprofundada as particularidades que existem na composição de trilhas sonoras de games.


Um dos desafios que Wintory destaca é como a suave ambientação sonora produzida pela sutileza das notas longas de pads (acordes sustentados tocados por sintetizadores, fazendo a base harmônica da música), sobre a qual os instrumentistas acústicos se destacam, é difícil de ser traduzida para uma orquestra completamente acústica. O compositor também comenta como a relação entre solo e acompanhamento se modifica com o apoio do game na música “Threshold”. Com a presença do jogador, o violoncelo solista de Tina Guo toca o leitmotiv (motivo musical associado ao personagem) (GROUT; PALISCA, 2007, p. 647) que o acompanha durante a viagem, fazendo com que se torne importante o seu destaque a todo momento, pensando o violoncelo como um companheiro do jogador durante o game. Já enquanto composição musical individual, sem a necessidade de acompanhamento constante, é permitido que os outros instrumentos da orquestra também mostrem seu brilho, expandindo seus limites de registro, nos graves e agudos, além do que acontece originalmente no game.


Em contrapartida, enquanto em “Threshold” o papel solista pode ser reduzido para dar espaço à companhia da orquestra, em “Road of Trials” Wintory se permite destacar mais ainda as habilidades de cada instrumentista. Com o prazer estético relegado apenas à música, o virtuosismo de cada sessão e de cada músico é explorado, destacando não apenas o violoncelo de Tina Guo novamente, como o oboé de Kristin Naigus. O compositor também faz questão de mencionar a qualidade da mixagem de Steve Kempster e da masterização de Jake Kackson, Greg Hayes e do Classic Sound.


Por fim, na música “Descent”, Wintory nos mostra como, para o game, a composição foi controlada de maneira a não transmitir sensação de um jogo de terror durante a cena na qual ela é reproduzida. Mas distanciando-se dessa necessidade produzida pelo game e da possibilidade da utilização de sintetizadores, o compositor apresenta maneiras de lidar acusticamente com efeitos originalmente sintetizados, além de trazer um clima mais aterrorizante, que de acordo com o compositor, seria ir longe demais no contexto do game.


A partir dos comentários do compositor sobre a reimaginação da trilha sonora de Journey, percebemos como a composição para a mídia exige um olhar específico às suas necessidades, que deve considerar não apenas os elementos extra-musicais que sua música vai acompanhar, conceito já amplamente utilizado na música programática mas principalmente, considerar também a presença do jogador e de como ele vai experienciar o game ao longo da jornada. Afinal, em um game, a música possui um papel muito maior do que ser apreciada como obra musical, pois deve acompanhar o jogador ao longo do que frequentemente podem se tornar dezenas de horas, sendo essencial o seu planejamento para que não haja o risco de se tornar maçante ou previsível, prejudicando a experiência do jogador.


Traveler - A Journey Symphony está disponível no canal do Youtube e nos perfis do Spotify e Bandcamp de Austin Wintory.






Referências


ALVES, Cecília da Fonte. CULTURA INDEPENDENTE: conceitos e práticas dos jogos digitais indies. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Pernambuco, 2015. Área de concentração em Design e Artefatos Digitais. Recife, 2015. 151p.

GROUT, Donald J; PALISCA, Claude V. História da música ocidental. Traduzido por: Ana Lisboa Faria: Gradiva. Lisboa, 2007. 759p.

SWEET, Michael. Writing interactive music for video games: a composer’s guide. Crawfordsville, Indiana: Addison-Wesley, 2015. 478p.



Como referenciar este artigo:

YGLESIAS, Vinicius. A reimaginação da trilha sonora de Journey. Blog C4, Campinas, 25 mar. 2022. Disponível em: <https://unicampc4.blogspot.com/2022/03/a-reimaginacao-da-trilha-sonora-de.html>