Áudio nos games: mais do que um mero tempero

 Leonardo Porto Passos

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Tenho aqui a honra e a responsabilidade de estrear o Blog C4 com um assunto no qual estou imerso há cerca de cinco anos: áudio para games. Mas antes de mais nada, vou me apresentar.

Meu nome é Leonardo Porto Passos, nascido em 1978, mais conhecido por LeoP. Sou mestrando do Programa de Pós-Graduação em Música (PPGM) do Instituto de Artes (IA) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pós-graduando (especialização lato sensu) em Processos Didático-Pedagógicos para Cursos na Modalidade à Distância pela Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp), pós-graduado (especialização lato sensu) em Formação de Escritores pelo Instituto Vera Cruz (2013) e graduado em Letras Português/Inglês pela Universidade Paulista (2008). Realizo pesquisas nas áreas de sonologia, design de jogos, desenvolvimento de games, composição musical, música computacional, design de som, trilhas sonoras, programação de áudio, narratologia, acessibilidade, ficção científica e etnomusicologia. Atuo profissionalmente como redator e revisor textual e também como compositor, designer de som, programador de áudio, roteirista e programador amador na área de games.

Pois bem, vamos aos games.

Um game independente (ou indie) é aquele desenvolvido individualmente ou por uma pequena equipe, sem financiamento de grandes empresas (LEMES, 2009) e com foco mais orientado na criatividade do que no marketing e nas vendas (CASTRO, 2015). No universo do desenvolvimento de games independentes, é muito comum que os desenvolvedores utilizem assets (qualquer elemento gráfico, sonoro, textual ou código que compõe um game) de áudio baixados de maneira gratuita na internet, principalmente quando se tratam de desenvolvedores iniciantes, para a criação de protótipos ou em games com propósito de estudo. Eu mesmo já cheguei a disponibilizar, em um antigo site meu, alguns pacotes gratuitos de efeitos sonoros para que os desenvolvedores pudessem utilizá-los em seus games, fossem em protótipos, estudos ou em games mais profissionais – nos quais o uso de assets gratuitos é menos comum, mas ainda assim, existe.

E por que a utilização de pacotes gratuitos de assets de áudio não é muito comum por desenvolvedores mais experientes? Bom, não há apenas um único motivo, mas alguns.

Em primeiro lugar, vamos tentar entender o papel da música em um game. De acordo com o designer de jogos Jesse Schell (2011, p. 3), autor do livro A Arte de Game Design, “A música é o idioma da alma. Se seus jogos forem realmente tocar as pessoas, envolvendo-as e abraçando-as, não conseguirão fazê-lo sem música”. Isso é notório. Tanto que ninguém, ou quase ninguém, publica um game sem trilha sonora, pois o áudio é uma parte muito significativa de um jogo para ser ignorada, a não ser que haja uma razão muito específica para tal. Porém, a questão aqui é a singularidade.

Da mesma maneira que ninguém se arrisca a publicar um jogo com pretensões profissionais e/ou criativas feito com assets gráficos genéricos baixados na internet, não seria muito prudente fazer o mesmo com as músicas e os efeitos sonoros. Cada jogo tem suas próprias particularidades, seu próprio universo e personagens, sua própria narrativa, seu próprio conjunto de mecânicas, ainda que seja fortemente baseado em jogos pregressos. Portanto, na maior parte dos casos, é necessário que os sons sejam criados especificamente para o game em questão, de acordo com a sua estética e suas mecânicas, caso contrário, o áudio provavelmente irá destoar de todo o resto.

Schell (2011, p. 293) aponta ainda que a música “fala com os jogadores em um nível mais profundo – um nível tão profundo que pode mudar o estado de espírito, desejos e ações – e eles nem sequer percebem que isso acontece”. Ou seja, o designer de jogos deve utilizar a música, assim como os efeitos sonoros, para fazer com que os jogadores procurem por algo, percebam que estão indo pelo caminho errado, que se movam de forma cautelosa, apertem o passo ou atirem por todos os lados. E também para criar atmosferas cômicas, tensas, aterrorizantes, aventurescas, dramáticas etc. As possibilidades são muitas. E aí fica a pergunta: como um designer de jogos vai conseguir incitar os jogadores a fazerem exatamente aquilo que quer – em benefício, por exemplo, do desenvolvimento narrativo do game – com músicas genéricas, que não foram criadas para aquele exato propósito? Não é impossível, depende da complexidade das intenções. E depende também da disponibilidade e do tempo despendido em procurar músicas gratuitas na internet que se adequem perfeitamente ao game.

Muitas vezes, isso tudo é atingido com músicas de terceiros, e aí entra a questão do licenciamento, quando você paga pelo direito de utilizar músicas já existentes como trilha sonora para o seu game. Mas nesse caso, há um custo – que na maior parte das situações é bastante oneroso, principalmente quando se trata de músicas de artistas consagrados –, e essas músicas não serão originais do seu game. É mais uma das muitas decisões que um designer de jogos precisa tomar: música original ou música licenciada? A segunda é uma prática muito utilizada, e com eficácia comprovada, no cinema. Mas não é algo muito recorrente nos games, a não ser em casos mais específicos, como os games de mundo aberto em terceira pessoa, repletos de músicas licenciadas utilizadas de forma diegética (que são ouvidas tanto pelo jogador quanto pelos personagens, ou seja, que fazem parte do universo ficcional do game), que são reproduzidas, por exemplo, quando o personagem entra num veículo, como em GTA e Mafia.



Gosto de relembrar as palavras de Jeannie Novak (p. 286), autora do livro Desenvolvimento de Games, que diz: “Os games são uma experiência verdadeiramente imersiva e a música que os jogadores ouvem enquanto jogam (…) pode causar neles uma impressão duradoura. Quando você considera os games de ‘mundo em estado persistente’, que envolvem os jogadores por semanas ou até meses a fio, não chega a ser surpreendente que a base de fãs de música para games esteja crescendo tanto!”. Palavras essas que vão ao encontro de Leonard B. Meyer em seu livro Emotion and Meaning in Music (1956), que influenciou David Huron a estabelecer os motivos pelos quais a música induz emoções nos ouvintes (expectativa e antecipação).

Talvez seja por isso que desenvolvedores e estúdios optem por utilizar músicas originais, pois sabem que os jogadores ficarão envolvidos por muito tempo com o game e, consequentemente, com os sons desse game, e mesmo após o seu término – como é o caso da trilha musical de filmes –, o jogador poderá se manter conectado com ele por meio de sua trilha sonora. A relação é muito mais íntima e intensa do que a música de um artista X que licenciou sua música para o jogo Y. Neste caso, a pessoa pode acabar por se conectar mais ao artista em si do que ao jogo que continha a música daquele artista. Com uma música criada especificamente para um jogo, esse desligamento / desconexão não ocorre.

Além disso, as músicas costumam ser tocadas na íntegra em um game, e é comum que sejam repetidas diversas vezes, já que são reproduzidas em loop (o arquivo de áudio volta ao início quando chega ao final), diferentemente do que ocorre no cinema, em que geralmente só um trecho de cada música é reproduzido. Portanto, essa repetição constante causa uma conexão muito maior do jogador com a trilha sonora, e isso merece muita atenção, pois uma música entediante, repetitiva ou desconectada da estética ou das mecânicas do game pode causar estranhamento ou a temida fadiga auditiva, que provoca irritação e pode levar o jogador a diminuir o volume ou até desligar o som, anulando todo o trabalho realizado pelo compositor e designer de som.

Tudo o que foi dito aqui também se aplica aos efeitos sonoros, principalmente no que se refere à singularidade. Imagine um jogo cujo personagem principal é uma enorme mamona seca que se locomove em placas de isopor com partes cobertas por marshmallow derretido (puro devaneio da minha parte apenas a título de exemplo). Nesse caso, os efeitos sonoros de movimento do personagem serão complexos e irão requerer um design de som cuidadoso e criativo. E provavelmente o desenvolvedor não irá encontrar assets de áudio gratuitos que representem com perfeição as particularidades desse personagem bastante singular, por isso a necessidade de um bom trabalho de design de som para criar sons tão específicos.

Para concluir, digo o seguinte: seu jogo não é qualquer jogo. É o SEU jogo. Seu produto, sua criação. Seu filho. Fruto de sua criatividade e dedicação. E isso, por si só, é motivo mais do que suficiente para você dar a verdadeira atenção que o áudio do seu game merece. Afinal, os sons de um game não são apenas um ingrediente que vai temperar os recursos visuais.


Ouça aqui o episódio nº 1 do PodC, o podcast do Blog C4, sobre este artigo.


REFERÊNCIAS:

CAMARGO, Fernando Emboaba de. Interatividade e narratividade sonora nos games. Campinas, 2018. 188 f. Tese (Doutorado em Música) – Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas.

CASTRO, Vinicius Oppido de. Indie games: a atuação dos independentes no design de videogames. São Paulo, 2015. 95 f. Monografia (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade Presbiteriana Mackenzie.

LEMES, David de Oliveira. Games independentes: fundamentos metodológicos para criação, planejamento e desenvolvimento de jogos digitais. São Paulo, 2009. 158 f. Monografia (Mestrado em Tecnologias da Inteligência e Design Digital) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

NOVAK, Jeannie. Desenvolvimento de games. São Paulo: Cengage Learning, 2017.

SCHELL, Jesse. A arte de game design: o livro original. Trad. Edson Furmankiewicz. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.


Como referenciar este artigo:

PASSOS, Leonardo Porto. Áudio nos games: mais do que um mero tempero. Blog C4, Campinas: Nics; Unicamp, 18 mar. 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em: <https://unicampc4.blogspot.com/2022/03/audio-nos-games-mais-do-que-um-mero.html>.