Áudio e imersão de mãos dadas nos games

 Leonardo Porto Passos

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Um conceito que é constantemente tratado em design de jogos é a imersão. Todo mundo que passa a se envolver com desenvolvimento de games (os jogos eletrônicos digitais) acaba, em algum momento, se deparando com o termo. Mas o que é a imersão? Como ela vive? Do que se alimenta? Vamos falar um pouco sobre essa tão almejada experiência proporcionada pelos games.

A imersão pode ser descrita como a sensação de envolvimento por uma realidade totalmente diferente – seja ela fictícia ou não –, alheia à realidade do jogador e que captura por completo a sua atenção e todos os seus sentidos (MURRAY, 2003, p. 102).

Mas é preciso deixar claro que a imersão não é um conceito exclusivo dos games, mas de qualquer narrativa. No cinema, por exemplo, ela acontece quando o espectador passa a se sentir dentro do universo do filme, como se ele estivesse na pele do protagonista. Isso ocorre quando o universo ficcional do filme é bem estruturado, a atuação dos atores é convincente, há uma narrativa envolvente e consistente – no sentido de não possuir incongruências ou falta de verossimilhança¹ (que, se for insuficiente ou rompida, pode levar à suspensão da descrença²) – e, é claro, a trilha sonora é condizente com a estética da história contada. É a imersão que nos faz chorar numa cena emocionante de um filme, por exemplo.

Mas ainda que não seja exclusividade dos games, a imersão proporcionada por eles tem uma enorme vantagem, já que os games são mídias interativas³ e não lineares. Interativa porque o jogador não é apenas um espectador passivo diante de uma narrativa que nunca se altera – ou seja, linear –, mas um espectador que interage com a história, toma decisões e, dependendo do game, é capaz de conduzir a história de acordo com as suas intenções.

Mesmo nos games nos quais a narrativa é linear, ainda assim, cada vez que forem jogados, as histórias irão se alterar, nem que seja de forma sutil. Se você jogar a primeira fase do Super Mario World diversas vezes, é muito provável que algumas pequenas alterações ocorram em cada uma delas: um inimigo que foi deixado para trás ao invés de ter sido derrotado como na outra partida jogada, uma vida que foi perdida, uma morte ocasional, power ups (upgrades, melhorias, atualizações que o personagem do jogador recebe ao longo do game) ou coletáveis que foram deixados para trás, alguma alteração em relação ao tempo para a fase ser completada... E por aí vai. Já no cinema tradicional (em oposição às experiências de filmes interativos, como é o caso de Black Mirror: Bandersnatch, que são não lineares), se você assistir a um filme diversas vezes, ele será sempre o mesmo, sem qualquer mudança. Ou seja, linear e não interativo.


E justamente por possuir interatividade e, por consequência, maior controle por parte do jogador – que também é espectador diante da narrativa apresentada – é que os jogos são capazes de proporcionar maior imersão do que as demais mídias. De acordo com Tynan Sylvester (2013), imersão é quando a divisão mental entre a vida real do jogador e as ações do personagem se suaviza, de forma a tornar os eventos ocorridos com o personagem tão significativos que pareçam estar acontecendo com o próprio jogador. Portanto, ela ocorre quando a experiência do jogador espelha a experiência do personagem. Ou seja, o jogador pensa e sente o mesmo que o personagem, como se ambos fossem uma única entidade, ou a sinergia entre os dois se torna o mais completa possível.

Mas não é só por conta da interatividade que os games são mais imersivos. É preciso que o fluxo do game, as mecânicas e a narrativa caminhem juntas para proporcionar o máximo de imersão ao jogador. Tudo isso provoca a “suspensão da descrença”, que, de acordo com Jeannie Novak (2010), é quando o jogador esquece da vida real e passa a aceitar a realidade artificial proposta pelo game, um modo de aceitação de regras e experiências que podem não fazer sentido e serem impossíveis no mundo real. Quando tudo caminha bem, é como se o mundo real desaparecesse e restasse apenas a realidade existente dentro do universo ficcional. Por mais absurdas que pareçam as ideias, o jogador as “compra” e as aceita como “reais”. Por isso nos deixamos envolver tanto por histórias de heróis com superpoderes, magos que derrotam demônios ou alienígenas em naves poderosas.

E no meio de todas essas ferramentas que proporcionam maior imersão está o áudio. Efeitos sonoros e músicas criam atmosferas, conduzem o humor e o estado de espírito. Jason Darby (2008) diz que os sons oferecem pistas e indicam aos jogadores as ameaças dos inimigos, influenciam o nível de satisfação obtido pelo game e também podem transmitir uma mensagem ou um posicionamento sobre o game ou sobre o estúdio de desenvolvimento.

E não termina aí. Darby (2008) também defende que o áudio tem maior capacidade de imersão do que os gráficos. Enquanto os gráficos atraem os jogadores para uma cena, o som acontece ao fundo e em toda parte, o que causa um efeito mental que gráficos sozinhos não podem alcançar. O autor advoga que isso acontece provavelmente porque os sons da vida real podem ser reproduzidos em um videogame de forma mais fidedigna do que é possível fazer com os aspectos visuais.

O curioso é que os sons passam quase despercebidos quando bem feitos. Isso porque eles estão fazendo o seu papel de representar um mundo irreal, fictício. Porém, quando entram em conflito com a estética do game, os sons são notados e causam incômodo. Imagine que você está lá, todo entretido com um game realista de guerra, e ao pegar uma nova arma, você se surpreende com o som dos tiros por serem esquisitos e divertidos, que caberiam bem num jogo da franquia Rayman Legends, por exemplo. Seria um tremendo balde de água fria, não é mesmo? Isso certamente causaria a temida quebra da quarta parede, que ocorre quando o espectador ou jogador toma conhecimento de que os personagens e ações não são reais e se lembra de que está diante de uma ficção, o que elimina a suspensão de descrença. O som absurdo e incoerente da arma faria o jogador sair do universo ficcional, rompendo a imersão, e o levaria a questionar a verossimilhança do jogo. Ou seja, efeitos sonoros ruins são percebidos, enquanto aqueles que são bem planejados e desenvolvidos adequadamente passam batidos.

O áudio é muito utilizado para “criar um clima” para os gráficos, antecipar aquilo que será visto, gerar expectativa, suscitar emoções. Ele cria toda a situação e ambientação antes mesmo de podermos ver o que está acontecendo. Isso é amplamente utilizado nos filmes e jogos de terror, por exemplo, com os barulhos de ranger de portas, de passos ou de trovões para causar medo e tensão antes mesmo de sabermos o que se passa. Os sons criam “distrações” propositais e ajudam a conduzir a narrativa para onde se quer. Eles reforçam sentimentos e causam sensações. Eles são importantes até mesmo no menu. Antes mesmo do seu game começar, na tela de abertura seguida do menu, você quer mostrar que se trata de uma experiência suave e tranquila ou tensa e desafiadora? A escolha correta dos efeitos do menu vai dizer sobre o que é o game antes mesmo do seu início.

Agora imagine isso tudo em um game no qual o áudio ocorre de maneira dinâmica, ou seja, as músicas se alteram – sejam em relação a volume, ritmo ou tom – de acordo com o ambiente e de acordo com as decisões tomadas pelo jogador. Mais um ponto positivo para os games, não? Com certeza. Mas esse é um assunto complexo que ficará para a minha próxima postagem neste blog.


Notas:

¹ Verossimilhança: “ligação, nexo ou harmonia entre fatos, ideias etc. numa obra literária, ainda que os elementos imaginosos ou fantásticos sejam determinantes no texto; coerência” (HOUAISS, 2009, verbete “verossimilhança”).
² “A vontade do espectador de aceitar como verídicas as premissas do jogo ou ficção, independente delas terem verossimilhança com a vida real ou parecerem indubitavelmente fantasiosas ou fictícias, são chamadas de Suspensão da Descrença” (BIGOGNO; RÊDA; CARRETTA, 2017, p. 1069).
³ Salen e Zimmerman (2012, p. 75-76) apresentam “quatro modos de interatividade ou quatro diferentes níveis de engajamento que uma pessoa pode ter com um sistema interativo”, a saber: Modo 1. Interatividade cognitiva; ou a participação interpretativa. Modo 2. Interatividade funcional; ou participação utilitária. Modo 3. Interatividade explícita; ou participação com as escolhas e os procedimentos definidos. Modo 4. Interatividade além do objeto; ou a participação na cultura do objeto.
⁴ A a ficção não linear, ou o que Espen Aarseth (1997, 2ª capa) chama de literatura ergódica (ergodic literature), é “(…) um termo emprestado da física para descrever textos abertos e dinâmicos (...) com os quais o leitor deve realizar ações específicas para gerar uma sequência literária”.



REFERÊNCIAS:

AARSETH, Espen J. Cybertext: perspectives on ergodic literature. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1997.

BIGOGNO, Matheus; RÊDA, Vitor; CARRETTA, Marcelo La. Dissonância ludonarrativa x suspensão da descrença: quando o gameplay desmente a narrativa ou quando o jogador apenas a aceita. In: SBGAMES, 16., 2017, Curitiba/PR. Anais…: Culture Track – Short Papers. Porto Alegre/RS: SBC, 2017, p. 1068-1071. ISSN: 2179-2259. Disponível em: <http://www.sbgames.org/sbgames2017/papers/CulturaShort/175347.pdf>. Acesso em: 7 abr. 2022.

DARBY, Jason. Awesome game creation: no programming required. 3. ed. Boston (MA, USA): Charles River Media, 2008.

HOUAISS, Antonio [Instituto]. Houaiss Eletrônico. Versão 3.0. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

MURRAY, Janet. Hamlet no holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço. São Paulo: Itaú Cultural; Editora Unesp, 2003.

NOVAK, Jeannie. Desenvolvimento de games. São Paulo: Cengage Learning, 2010.

SALEN, Katie; ZIMMERMAN, Eric. Regras do jogo: fundamentos do design de jogos: principais conceitos, v. 1. São Paulo: Blucher, 2012.

SYLVESTER, Tynan. Designing games: a guide to engineering experiences. Sebastopol (CA, USA): O’Reilly Media, 2013.



Como referenciar este artigo:

PASSOS, Leonardo Porto. Áudio e imersão de mãos dadas nos games. Blog C4, Campinas: Nics; Unicamp, 8 abr. 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em: <https://unicampc4.blogspot.com/2022/04/audio-e-imersao-de-maos-dadas-nos-games.html>.