Palavras como guia para uma compreensão da música no tempo da técnica

 

    
Flauta do período neolítico



                                                 





Simona Cavuoto

s234737@dac.unicamp.br

http://lattes.cnpq.br/6963679109563710

      

      

Em 2021 conheci, graças às aulas do Prof. Fornari, os colegas do Coletivo de Comunicação, Cognição e Computação (Blog C4 unicampc4.blogspot.com), cada um deles vindo de áreas diferentes da minha. Sou violinista de formação erudita e sempre atuei neste contexto, seja como musicista solista, camerista, em orquestra sinfônica, de ópera, performance historicamente informada e música contemporânea. Meu nome é Simona Cavuoto (http://lattes.cnpq.br/6963679109563710 ), e gostaria de compartilhar com vocês as minhas reflexões sobre música, técnica e tecnologia. Para esta finalidade usarei como principal ferramenta de investigação as palavras!

As palavras indicam objetos, ideias e pensamentos; elas são uma das ferramentas da comunicação humana e, como tal, estão sujeitas às variações temporais, culturais e pessoais de quem as usa, pois foram aprendidas e transmitidas entre gerações.

Há palavras que são usadas com frequência há centenas de anos nos mais variados contextos socioculturais. Aprofundá-las de acordo com os usos e significados os quais assumiram desde suas origens não se vislumbra como um trabalho estéril de conhecimento refinado em um fim ou em si mesmo; mas revela uma perspectiva de imersão em outras visões e em outras experiências.

As palavras nos revelam os caminhos das ideias, pensamentos, sua circulação, transformação e desenvolvimento no tempo e no espaço. Estes pertencem à metafísica do hiperurânio(1) das ideias, termo usado por Platão (ὑπερουράνιος) segundo o dicionario de filosofia Treccani, para descrever o "lugar acima do céu" ou "acima do cosmos". Nesse sentido, sendo o espaço, na concepção grega, finito e terminado precisamente pelos céus, o hiperurânio é 'lugar' apenas em um sentido metafórico; na realidade, trata-se de uma referência a um plano metafísico da realidade, ou das idéias, contemplado pela alma em seu momento mais elevado.

 As palavras, também, contam de forma implícita tudo o que não foi materializado no espaço finito da experiência vivida como realização concreta porque foi excluído, descartado pelos acasos, necessidades ou por escolhas de outra natureza. 

O século XXI revelou-se como um século que abraçou a tecnologia como um farol que convergiu às visões humanas alcançáveis ​​por meio da ideia de um desenvolvimento ilimitado da mesma. Martin Heidegger (1889 - 1976), filósofo alemão, considerado o maior expoente do existencialismo tanto ontológico quanto fenomenológico, aborda a reflexão sobre a técnica em sua obra principal, Ser e Tempo (Sein und Zeit, Halle, 1927), e a partir da palestra que o filósofo deu na Technische Hochschule de Munique em 1953, conferência cujo conteúdo foi coletado no livro Die Frage nach der Technik(2). O filósofo alemão, expressa a consideração “que é verdadeiramente perturbador não tanto que o mundo se transforme em um domínio completo da tecnologia mas que o homem não esteja de forma alguma preparado para essa mudança radical no mundo. Muito mais alarmante é que ainda não conseguimos chegar, através de um pensamento meditativo(3), a uma comparação adequada com o que realmente está surgindo em nossa época(4).   

Por técnica entendo todas as formas de ação humana orientadas para um propósito que utiliza ferramentas (artefatos, métodos ou processos) ou conhecimento especializado, enquanto que tecnologia, para mim, se refere a áreas mais amplas de conhecimento e habilidades baseadas em conhecimento científico a partir do qual é possível extrair aplicações práticas.

O uso de expressões cunhadas por Mark Prensky como nativos digitais(5), imigrantes e tardios digitais sublinham a necessidade de compreender, e de certa forma classificar, a diferença geracional das abordagens humanas ao surgimento da tecnologia digital, assim chamada porque baseada no sistema de lógica binária, que cria como que um tipo de criptografia digital, organizada em bytes e bits (em inglês binary digit ou bit), centrada no computador; a tecnologia digital é a cifra da nossa era. 

O ano de início da era digital é considerado 1945, quando John von Neumann transcreveu no artigo First draft of a report of EDVAC, os princípios da Máquina Universal(6) no esquema do stored program computer. Imersos como estamos na velocidade da web, absorvidos por uma crença implícita de que o desenvolvimento tecnológico será infinito, facilmente esquecemos que a música vem enfrentando o mundo da tecnologia há milênios: os primeiros objetos sonoros aparecem há 40.000 anos no Paleolítico anterior pelo Homo Sapiens Sapiens, e são os primeiros achados perfurados pelo homem. Essas pedras, sementes, madeiras, conchas, ossos e chifres usados ​​como percussão, apitos, flautas, trombetas e cordas, eram materiais retirados do meio ambiente, artificialmente trabalhados e modificados pelo homem para produzir sons(7). Ainda mais incrível pode se considerar que no Museu Nacional da Eslovênia é possível admirar  o mais antigo instrumento musical do mundo, uma flauta neandertal de 60.000 anos.

A flauta de Divje babe (fig.1) é a flauta paleolítica mais antiga conhecida até hoje em todo o mundo e a única que foi definitivamente feita por neandertais. É pelo menos 10.000 anos mais velha que outras flautas paleolíticas, que são contemporâneas com o aparecimento do povo anatomicamente moderno na Europa; evidência fundamental de que os neandertais eram, como nós, seres espirituais totalmente desenvolvidos capazes de expressão artística sofisticada.


                             

                              Figura 1 - Flauta de Divje babe



  

                 

O homem primitivo consegue gravar formas no material utilizado e reproduzir sons artificiais por meio de instrumentos construídos a partir da modificação de materiais encontrados na natureza (ossos, madeiras, pedras etc,), através do domínio de certas técnicas e habilidades: a capacidade de discernir o material, o projeto, a construção, a reprodutibilidade do projeto. A própria possibilidade de produzir e repetir um som ou sons variados pelos instrumentos feitos, configura-se como um processo técnico: é preciso colocar em prática um determinado gesto, respiração ou posição para obter um resultado sonoro que possa ser repetido. 

Nossos ancestrais começaram a dar forma a objetos com um propósito, um projeto, uma ideia em mente, a palavra performance(8) (do inglês, to perform), executar, performer, (realizar em francês antigo), derivado do latim performare, realmente significa “dar forma” que, segundo o dicionário Treccani, tem em sentido genérico de realização concreta de uma atividade, de um comportamento, de uma situação específica; pode referir-se ao resultado de uma competição esportiva, sua forma de realização, referir-se ao desempenho de um carro ou indicar um desempenho artístico caracterizado por qualidades espetaculares ou dramáticas particulares.

Na palavra performance, humano e máquina estão no mesmo nível; ambos trabalham juntos para dar forma a algo artístico e puramente mecânico.

Se as pessoas constroem instrumentos para serem tocados, há aqueles que desenvolvem técnicas para poder extrair dessas invenções sonoras, sons agradáveis:


O Imperador Frederico foi um fidalgo muito nobre, recebeu músicos, trovadores e belos oradores, homens de artes, cavaleiros, esgrimistas e todas as pessoas(9)».


Esta descrição das qualidades cortesãs de Frederico, tirada do Novellino(10) (NOVELLINO em "Enciclopédia Italiana" - treccani.it) enumera os sonatori (músicos) como aqueles que dominavam a técnica de um instrumento musical citados entre os artistas de outras especialidades, os favellatori, os que dominavam a técnica da oratória, schermitori (os esgrimistas), que praticavam a técnica da esgrima.                                   

 É interessante notar que o uso da definição sonatore ou tocador, termo comumente usado em antigos tratados e volumes hoje em dia, tem o valor de um mascate ou músico de rua, revelando-se um termo não adequado para indicar um intérprete musical com sólidos conhecimentos de estudos formais.

Saber tocar um instrumento musical nem sempre é suficiente para ser considerado e reconhecido. Ser músico é diferente de ser sonatore (tocador): o sonatore conhecia uma técnica mas ao longo dos séculos manteve-se o valor depreciativo na palavra como de músico medíocre. O músico, pelo contrário, domina a técnica, a partir da qual alcança a expressão da interpretação revelando nas sutilezas do uso das palavras o conceito de que a técnica, pelo menos na música, não pode ser considerada um fim, mas um meio de comunicação. As palavras de hoje me conduziram neste primeiro percurso de reflexão, partindo dos primeiros instrumentos construídos na era pré-histórica até a origem da palavra performance, revelando como técnica e música foram próximas e inseparáveis desde a sua origem. 



REFERÊNCIAS:

CAPURSO, Giovanni. La filosofía ai tempi della tecnica. 27 marzo 2019. Disponível em:"<La filosofia ai tempi della tecnica | Officina filosofica>". Acesso em: 27 mar. 2022.

FILIPPAZZ, Franco; OCCHINI, Giulio; SALA, Fulvia. Il contributo italiano alla storia del Pensiero - Tecnica. Disponível em:"<Tecnologie digitali in "Il Contributo italiano alla storia del Pensiero: Tecnica" (treccani.it)>". Acesso em: 30 mar. 2022.

MAIOLI, Walter. Strumenti musicali nella preistoria. Disponível em":<Strumentario Sonoro preistoria (soundcenter.it)>". Acesso em: 30 mar. 2022.

Natural History Museum of Slovenia. Disponível em:"<Neanderthal Flute – the Flute from Divje Babe>". Acesso em 27 abr. 2022.

TÉCNICA. Dicionário online Treccani, 30 mar. 2022. Disponível em:"<tècnica in Vocabolario - Treccani>". Acesso em 28 mar. 2022.

ROCCONI, Eleonora. Mousikè Téchne - La musica nel mondo greco. Milano, 2004. Pubblicazioni dell’I.S.U. Università Cattolica. ISBN: 978-88-8311-274-4


1) hiperurânio em "Dicionário de Filosofia" (treccani.it)

2) HEIDEGGER, M. Die Frage nach der Technik (1953), em Vorträge und Aufsätze, Neske, Pfullingen 1957, trad. it. La questione della tecnica, em Saggi e discorsi, Mursia, Milano 1976, pp. 5-27.

3) Concentração da mente na especulação de problemas filosóficos ou morais.

4) HEIDEGGER, M. O abandono, Il Melograno, Génova, 1983, p. 36.

5)https://www.marcprensky.com/writing/Prensky%20-%20Digital%20Natives,%20Digital%20Immigrants%20-%20Part1.pdf 

6) A moderna teoria da computação foi formulada por Alan Turing (1912-1954) com a máquina universal descrita no artigo On computable numbers, with an application to the Entscheidungsproblem (1936).

7) MAIOLI, W. Strumenti musicali nella preistoria. Disponível em:”<Strumentario Sonoro preistoria (soundcenter.it)>.

8) performance in Vocabolario - Treccani


9) Tradução nossa do original “Lo’mperadore Federigo fue nobilissimo signore, a lui veniano sonatori, trovatori e belli favellatori, uomini d’arti, giostratori, schermitori, ed’ogni maniera gente”.


10) Segundo a tradição, trata-se de uma coleção de cem contos; originalmente talvez em maior número, composta, como os críticos parecem hoje concordar, no outono do século XIII por um único autor, um florentino desconhecido. 


Como referenciar este artigo:

CAVUOTO, Simona. Palavras como guia para uma compreensão da música no tempo da técnica. Blog C4: Nics; UNICAMP, 22 abr. 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em:

https://unicampc4.blogspot.com/2022/04/palavras-como-guia-para-uma-compreensao.html