O visocentrismo nos videogames: um assunto a ser debatido

 Leonardo Porto Passos

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Os primeiros videogames (Bertie the Brain,¹ OXO,² Nimrod,³ Tennis for Two, Spacewar!)⁵ surgiram entre o início das décadas de 1950 e 1960, mas até então não continham áudio, apenas gráficos. Com o passar do tempo, o desenvolvimento tecnológico e a popularização dessa nova mídia, os videogames tiveram seu potencial ampliado quando passaram a emitir sons, e assim se tornaram multimídia.



Por influência dos jogos eletromecânicos de pinball criados na década de 1930 e com a experiência junto ao público cativado, entre outras coisas, pelos sons gerados por esses jogos, os desenvolvedores de games pioneiros vislumbraram o grande potencial de adicionar áudio à essas plataformas, pois “[…] as máquinas de pinball incorporavam vários sinos e campainhas [acionados de modo eletromagnético], que serviam para atrair jogadores e gerar entusiasmo” (COLLINS, 2008, p. 7). Um dos primeiros exemplos foi o Contact (1934), pinball da Pacific Amusement Company que continha uma campainha elétrica, e a partir daí, várias campainhas e carrilhões elétricos foram incorporados às máquinas de pinball nos anos seguintes (COLLINS, 2008, p. 7), contribuindo para o enorme sucesso de público dessas máquinas na década de 1970. E foi no início dessa década, em 1971, que surgiu o primeiro arcade,⁷ o Computer Space (EDWARDS, 2011), que também trazia como novidade a reprodução de sons.


O Computer Space trazia diferentes sons de “batalha espacial”, incluindo “motores de foguetes e propulsores, disparos de mísseis e explosões”.⁹ Um material publicitário impresso da época anunciava as interações com o usuário baseadas em som: “Os motores de impulso de seu foguete, os sinais de giro do foguete, o disparo de seus mísseis e explosões enchem o ar com as imagens e os sons de combate enquanto você luta contra os discos voadores pela pontuação mais alta”.¹⁰

Atualmente, quase todos os videogames trazem recursos sonoros variados, que vão desde efeitos sonoros a músicas, ambiências e vozes (diálogos, narração e sons não linguísticos) (PASSOS; FORNARI, 2021a).

Ainda que os games permaneçam como uma mídia videocêntrica,¹¹ ou seja, em que as informações são transmitidas de maneira preponderante por uma tela, há mais de 50 anos são uma mídia audiovisual, o que significa que imagens e sons operam em concomitância e “podem” atuar em proporções semelhantes. Digo “podem”, entre aspas, porque nem sempre é o que acontece, infelizmente, diante do visocentrismo praticamente onipresente em nossa cultura atual:

A sensação de ouvir foi, durante séculos, dominada pela percepção visual. Mesmo que pesquisas científicas mais recentes tenham recuperado este sentido enquanto seus aspectos físico, cultural e mesmo social, discursos analíticos no campo da antropologia permanecem centrados no imagético e são poucos aqueles que contrapõem a discussão sobre o som à predominância da visualidade nas ciências humanas e sociais. (PINTO, 2001, p. 222).

Essa “predominância da visualidade” também pode ser vista na indústria dos videogames. Não é à toa que tanto se investe na evolução dos recursos gráficos nos videogames e em tecnologias de realidade virtual. Assim – sem deixar de levar em conta a pluralidade de gêneros de games, em que alguns dão ênfase, por exemplo, à narrativa (RPGs), outros aos aspectos visuais (esportes) –, não são raros os casos em que a distribuição orçamentária acaba privilegiando os recursos gráficos em detrimento do roteiro (games com ótima qualidade gráfica e narrativas triviais), da jogabilidade (games bonitos, mas tediosos de se jogar) e da trilha sonora (músicas e efeitos sonoros que não se equiparam em qualidade com os gráficos, chegando até a causar estranhamento pela discrepância). A questão, inclusive, pode estar relacionada às problemáticas da indústria cultural, do simulacro e da sociedade do espetáculo em que vivemos (PASSOS; FORNARI, 2021b).

Mas por que a preocupação com relação à predominância das informações visuais em detrimento da comunicação sonora nos videogames? Simples: por ser uma multimídia audiovisual, não é prudente deixar de explorar as muitas possibilidades oferecidas pelos recursos sonoros em um game, caso contrário, seria como ignorar parte de seu potencial enquanto multimídia, o que acaba por comprometer, ou pelo menos limitar, a experiência promovida pelo game. Não se trata, portanto, de deixar de dar importância aos gráficos, e sim de conferir o devido valor à comunicação sonora nos videogames, não somente em termos de qualidade técnica e criativa nas composições musicais e no design dos efeitos sonoros, mas também em estudos, pesquisas e experimentações que possam trazer inovações ao campo do áudio para games, enriquecendo essa multimídia com o pleno aproveitamento de todo o seu potencial.

Se os sons forem utilizados em sinergia com as imagens em um game, é possível aplicar o conceito de sinais e pistas sonoras etológicas trazido ao campo da música por David Huron. Mas esse é um assunto complexo – e fascinante! – que será tratado em meu próximo artigo aqui para o Blog C4, com o título “Emoções evocadas por sons em games: mostrar é melhor do que explicar - parte 1”. Até lá!


Notas:

¹ Ver: <http://www.popularmechanics.com/technology/gadgets/a23660/bertie-the-brain/>.
² Ver: <http://history-computer.com/oxo-game-guide/>.
³ Ver: <http://www.historyofinformation.com/detail.php?id=4011> e <http://www.wired.com/2010/06/replay/>.
⁴ Ver: <http://history-computer.com/tennis-for-two-complete-history/>.
⁵ Ver: <http://www.computerhistory.org/revolution/computer-games/16/189/2213> e <http://youtu.be/1EWQYAfuMYw>.
⁶ Ver: <http://www.arcade-museum.com/game_detail.php?game_id=13334>.
⁷ “Um arcade é uma máquina de jogo normalmente encontrada em locais públicos como shoppings, restaurantes e fliperamas, e geralmente é operado por moedas. Os jogos de arcade geralmente são videogames, máquinas de pinball ou jogos eletromecânicos. O final da década de 1970 até a década de 1980 foi a era de ouro dos arcades. Eles desfrutaram de alguma popularidade relativa durante o início de 1990. A popularidade dessa plataforma diminuiu lentamente, no entanto, à medida que os games de consoles e PC ganharam destaque.” (An arcade game is a game machine typically found in public places like malls, restaurants and amusement arcades, and is usually coin operated. Arcade games are usually video games, pinball machines or electromechanical games. The late 1970s through the 1980s was the golden age of the arcade games. They enjoyed some relative popularity even during the early 1990s. The popularity of this platform slowly declined, however, as console and PC games came into prominence.) (ARCADE…, 2018).
⁸ Ver: <http://thereader.mitpress.mit.edu/before-pong-there-was-computer-space/>.
⁹ Ver: <http://flyers.arcade-museum.com/?page=thumbs&db=videodb&id=1531>. Acesso em: 25 maio 2022.
¹⁰ Ver: <http://flyers.arcade-museum.com/?page=thumbs&db=videodb&id=1530>. Acesso em: 25 maio 2022.
¹¹ Videocêntrico / videocentrismo (AMARAL, 2016; CAVARERO, 2011) e visocêntrico / visocentrismo (PINHEIRO; BRECKENFELD; LYRA, 2019; SILVA, 2017; 2019) são conceitos distintos, apesar de ambos se referirem à visão. O primeiro se relaciona especificamente com a utilização da visão para captação de informações por meio de uma tela do tipo ecrã (eletrônica/digital); já o segundo se refere à visão de maneira geral, não necessariamente por uma tela eletrônica/digital. Assim, videogames são videocêntricos, mas nem tudo o que é visocêntrico, como histórias em quadrinhos impressas e pinturas em quadros, é videocêntrico, pois não são transmitidos por vídeo.


Referências:

AMARAL, Luiza Spínola. Áudio-imagem: estudo da comunicação auditiva segundo Joachim-Ernst Berendt. São Paulo, 2016. 136 f. Tese (Doutorado em Comunicação e Semiótica) – Pontifícia Universidade de São Paulo.

ARCADE game. In: TECHOPEDIA, Hardware. [S.l.]: Janalta Interactive, 2018. Disponível em: <http://www.techopedia.com/definition/1903/arcade-game>. Acesso em: 8 fev. 2021.

CAVARERO, Adriana. Vozes plurais: filosofia da expressão vocal. Tradução Flávio Terrigno Barbeitas. Belo Horizonte: UFMG, 2011.

COLLINS, Karen. Game sound: an introduction to the history, theory, and practice of video game music and sound design. Cambridge (USA): MIT Press, 2008.

EDWARDS, Benj. Computer space and the dawn of the arcade video game. Technologizer, 11 dez. 2011. Disponível em: <http://www.technologizer.com/2011/12/11/computer-space-and-the-dawn-of-the-arcade-video-game/>. Acesso em: 25 maio 2022.

PASSOS, Leonardo Porto; FORNARI, José. A profícua relação entre Pure Data e áudio para games. In: SBGAMES, 20., 2021a, Gramado. Anais eletrônicos…: Art & Design Track – Short Papers. Porto Alegre: Sociedade Brasileira de Computação, 2021. Disponível em: <http://www.sbgames.org/proceedings2021/ArtesDesignShort/218203.pdf>.

PASSOS, Leonardo J. Porto; FORNARI, José. Música, linguagem e videogames: um estudo sobre suas contribuições, correlações e confluências. Art Research Journal, Uberlândia: Abrace, Anda; Curitiba: Anpap; João Pessoa: Anppom, v. 8, n. 1, ago. 2021b. DOI: <http://doi.org/10.36025/arj.v8i1.24464>.

PINHEIRO, M. A.; BRECKENFELD, T. F. M.; LYRA, M. C. D. P. Processos criativos e imaginação: o trabalho de Bavcar como metáfora sobre a condição dialógica da psique. Tecnologias, Sociedade e Conhecimento, Campinas: Nied; Unicamp, v. 6, n. 2, p. 30-48, dez. 2019.

PINTO, Tiago de Oliveira. Som e música: questões de uma antropologia sonora. Revista de Antropologia, São Paulo: FFLCH-USP, v. 44, n. 1, p. 221-286, 2001. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/ra/issue/view/2039>. Acesso em: 25 maio 2022.

SILVA, Manoela Cristina Correia Carvalho da. Para além do visível: princípios para uma audiodescrição menos visocêntrica. Salvador, 2019. 238 f. Tese (doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia.

SILVA, Manoela da Silva; BARROS, Alessandra. Formação de audiodescritores consultores: inclusão e acessibilidade de ponta a ponta. Revista Faeeba: Educação e Contemporaneidade, Salvador: Uneb, v. 26, n. 50, p. 159-170, set./dez. 2017.



Como referenciar este artigo:

PASSOS, Leonardo Porto. O visocentrismo nos videogames: um assunto a ser debatido. Blog C4, Campinas: Nics; Unicamp, 27 maio 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em: <http://unicampc4.blogspot.com/2022/05/o-visocentrismo-nos-videogames.html>.