Sobre a classificação de jogos - parte 1

José Fornari (Tuti) - fornari@unicamp.br


Se a linguagem nos define como humanos e a música descende da protolinguagem emotiva dos nossos antepassados hominídeos (MITHEN, 2006), os jogos antecedem ambas, sendo uma atividade comum, pelo menos, entre todos mamíferos (BURGHARDT, 2005). Jogos descendem de atividades lúdicas exercidas principalmente por filhotes de diversas espécies, promovendo uma estratégia evolutiva para fomentar o treinamento simulado, em situação segura, de ações futuras (da vida adulta) normalmente arriscadas e perigosas, como a caça, o ataque e a defesa. Jogo é assim a simulação segura da realidade. Através de jogos, ocorre o processo espontâneo de enculturação, para a automatização de ações sociais que possibilitam maior e melhor integração, e assim a eficiência social do indivíduo em sua comunidade.

Pieter Bruegel. "Jogos de Crianças". (1560) https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_obras_de_Pieter_Bruegel

Do mesmo modo de tudo que é autoevidente (por exemplo, a beleza ou a justiça), também é pouco trivial definir o que é "jogo" e o ato de "jogar". No entanto, a filosofia e o método científico requerem definições formais, consistentes e precisas para delinear as fronteiras do conhecimento e o foco de um estudo, de modo que seja possível chegar a conclusões relevantes, que contribuam para o avanço do conhecimento numa determinada área de estudo.

O termo "jogo" vem do latim “jocus”, que remete a algo "jocoso", ou seja, divertido, engraçado; uma atividade lúdica, e que portanto, deve ser prazerosa. Para tanto, o jogo tem necessariamente que ser inofensivo, ou seja, o engajamento num jogo não pode ser compulsório e implicar riscos significativos de perdas físicas, emocionais ou financeiras, caso contrário, o jogo não seria "jocoso". Assim, o jogo deixa de ser jogo quando se torna sério. No entanto, flertar com a fronteira entre o que é sério e o que é brincadeira (o que é real e o que é ficção) é uma das características que torna um jogo sedutor e portanto instigante.

Imagem da série sul-coreana Round 6 (Squid game), na qual participantes são obrigados a jogar jogos infantis, porém arriscando suas próprias vidas (spoiler alert: quem de fato está jogando esses jogos não são seus participantes, compulsoriamente acossados pela própria ganância, mas sim uma elite de intocáveis que, anônima e intangível, acompanha o desenvolvimento das competições enquanto faz frívolas apostas em possíveis resultados e eventuais vencedores). https://www.metropoles.com/entretenimento/televisao/novo-hit-da-netflix-serie-round-6-e-acusada-de-plagiar-filme 


Uma das primeiras definições formais do conceito de jogo é encontrada no trabalho do sociólogo Caillois (1957), que define as características para uma atividade ser considerada como sendo um jogo. Esta deve ser: lúdica, estar separada da realidade presente, ter resultado imprevisível, ser ociosa (não produzir algo útil, como, por exemplo, comida ou dinheiro), ter regras bem definidas e ser fictícia. O engenheiro e pesquisador Clark Abt (1987) tentou transcender o princípio da improdutibilidade no jogo (conforme definida por Caillois), criando o conceito de  "jogos sérios" (serious games), referindo-se a jogos utilizados em propósitos específicos, como na educação, em treinamentos, em simulações e até mesmo em ações remotas. A meu ver, e conforme disse acima, estes não são de fato jogos, mas sim "gamificações", ou seja, modelos e processos que mimetizam características de jogos, mas que na verdade tem ações e consequências bastante reais, tanto para aquele que o opera quanto no mundo real, muitas vezes até com o propósito de distanciar psicologicamente este "pseudo-jogador" das consequências reais de suas ações, ao interagir com aquele modelo, como se este fosse apenas um inofensivo e divertido jogo.

Jigsaw, personagem principal do filme de terror "Saw" (2003), conhecido pela frase "I want to play a game" (eu quero jogar um jogo), onde vítimas são capturadas e obrigadas a jogar jogos com consequências sérias, potencialmente fatais, absolutamente dramáticas e aterrorizantes.  https://modern-neon.com/saw-a-pioneer-of-gorn/

O filósofo Wittgenstein já havia mencionado que definir o que é jogo pela classificação de seus elementos constituintes, como sua jogabilidade, suas regras ou o tipo de competição envolvida não conseguem definir adequadamente o que vem a ser um jogo (WITTGENSTEIN, 1953). Jogos são constituídos por partes cujo todo é maior e mais significativo do que a sua mera união. Do mesmo modo que na música, uma atividade humana de enorme relevância expressiva e de origem anterior à linguagem, a definição de jogo também é inefável, portanto não fragmentável sem incorrer em perdas reducionistas. Assim, tanto música quanto jogos devem ser definidos por suas características holísticas (ou seja, indissociáveis). Do mesmo modo que existem gêneros musicais, os jogos também foram naturalmente sendo organizados em gêneros.
Segundo Dwight Pavlovic (https://www.hp.com/us-en/shop/tech-takes/video-game-genres acessado em junho de 2022), os jogos atuais (mais especificamente os videogames) são organizados em dez categorias distintas de gêneros: 1) Sandbox (jogos cujos objetivos são definidos pelo próprio jogador. ex: Minecraft www.minecraft.net); 2) Strategy (RTS, real-time strategy, nos quais os jogadores competem simultaneamente, ou seja em tempo real, e TBS, de turn-based strategy, em que jogadores competem por meio de jogadas intercaladas, como no caso do xadrez ou do videogame Hearthstone, https://playhearthstone.com/en-us); 3) Shooter (FPS, first-person shooter, TPS, third-person shooter, jogos nos quais o jogador combate oponentes humanos ou computacionais, em primeira ou terceira pessoa); 4) MOBA (multiplayer online battle arena, jogos multiusuários que se organizam em times oponentes. Ex: LoL - League of Legends. ttps://www.leagueoflegends.com); 5) RPG (Role-playing games, jogos em que cada jogador é representado por um personagem num mundo ficcional, interagindo entre si embasados por um enredo em comum); 6) Sports (jogos de simulação, como os do gênero Sandbox, porém baseados em esportes tradicionais); 7) Puzzles (jogos do estilo quebra-cabeça, baseados em regras estritas e bem definidas, como Sudoku, Solitaire ou Tetris) 8) Action-adventure (jogos com roteiros muito definidos, que compõem as regras e ações esperadas pelo jogador. Ex: The Legend of Zelda); 9) Survival and horror (jogos na temática do terror); 10) Platformer (jogos de ação. Ex: Fancy-pants https://poki.com.br/g/fancy-pants). Similar aos gêneros musicais, que podem se mesclar e subdividir em novos gêneros ou mesmo ser controversos (diferentes ouvintes podem atribuir diferentes gêneros à mesma música), os gêneros do jogos também são incompletos e polêmicos. Ambos são estruturas dinâmicas de classificação social categórica de uma atividade lúdica porém essencial. Para uma classificação que pretenda ser mais formal, creio que um modelo de análise, processamento e síntese de dados multimodais possa vir a ser útil, o qual eu deixarei para apresentar e descrever na segunda parte deste trabalho. Até lá.

Referências:
MITHEN, Steven J. The singing Neanderthals: The origins of music, language, mind, and body. Harvard University Press, 2006.
BURGHARDT, Gordon M. The genesis of animal play: Testing the limits. MIT press, 2005. 
ABT, Clark C. Serious games. University press of America, 1987.
CAILLOIS, Roger. "Les Jeux et les Hommes, coll.«." Folio Essais», Gallimard, Paris, 1957.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Philosophical Investigations. Oxford: Blackwell,1953.



Como referenciar este artigo:

FORNARI, José. "Sobre a classificação de jogos - parte 1". Blog C4, Campinas: Nics; Unicamp, 07 junho 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em: <https://unicampc4.blogspot.com/2022/06/sobre-classificacao-de-jogos-parte-1.html>.