A relação entre música e efeitos sonoros - parte 1

Vinicius Yglesias

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O texto de hoje é uma introdução a um tema que abordarei nos próximos textos aqui do Blog C4, que trata da relação entre música e efeitos sonoros. Essa é uma separação que, ao mesmo tempo que parece intuitivamente bem compreendida, ela pode ser tratada de maneiras significativamente diferentes. Para compreender melhor essa questão, vamos começar a entender, neste primeiro artigo, algumas definições de “música” cunhadas ao longo da história, e a partir delas, falarei sobre o que entendo por música nos dias atuais.


Partitura de Belle, Bone, Sage, do compositor Baude Cordier, conhecido por realizar notações musicais experimentais no início do século XV (HOPPIN, 1978) cuja influência acredita-se chegar a Stockhausen, na Alemanha (TOOP, 2001), e a Hermeto Pascoal, no Brasil (BOREM; GARCIA, 2010). Fonte: <http://www.corpusmusicae.com/cmm/cmm_cc011.htm>


Ao longo da história, a definição de música, ou as “ideias de música”, como chama a educadora musical Teca Alencar (2013), passaram por muitas variações. O termo “música” vem do grego mousiké, que significa “a arte das musas”. Na Grécia Antiga, ele era utilizado para designar não apenas a música enquanto campo específico da área das Artes, como também um amplo conjunto de atividades, desde a ginástica e o teatro até a poesia e a dança (FUBINI, 2008).

No período medieval, Boécio, um dos mais respeitados teóricos musicais do período, apresentou não somente uma, mas três definições do termo. Do latim, o teórico propôs os termos musica mundana, ou música das esferas, inaudível, responsável por manter os planetas em sua órbita; musica humana, também inaudível, mas responsável pelo equilíbrio da alma humana; e por fim, a musica instrumentalis, ou seja, a música audível, produzida pelos instrumentos musicais e pela voz humana (GROUT, PALISCA, 2007; CASTANHEIRA, 2009).

Ao final do século XIV, ainda na Baixa Idade Média, começam a surgir os primeiros tratados acerca de uma beleza singular da música como fenômeno sonoro, colocando-a na perspectiva de uma arte autônoma. No século XV, Gioseffo Zarlino inicia a tentativa de organização da utilização dos intervalos musicais, movimento que, dois séculos depois, culminou na sistematização da harmonia tonal, na obra de Rameau (FUBINI, 2008), e mais tarde, no período romântico, na Musicologia como uma ciência da música (Musikwissenschaft) – ou, como define Guido Adler (1885), uma ciência da arte tonal – e na noção da música como “a rainha das artes” (FUBINI, 2008).

Já no século XX, inicia-se o que Paul Griffiths (1994, p. 100) chama de “música da era das máquinas”1, uma nova música para uma nova era, representada por experimentos com equipamentos eletrônicos nas composições do período, com compositores como Pierre Schaeffer na musique concrète francesa e Werner Meyer-Eppler na elektronische musik alemã (PASSOS, 2021), movimentos que passaram posteriormente a ser chamados de música eletroacústica (SANTAELLA, 2019).




A manifestação dessa “nova música” resulta, como a fala de Griffiths indica, em uma redefinição do próprio significado de música, não mais limitado a sons produzidos por instrumentos musicais construídos com esse objetivo, mas agora um significado que pode abarcar qualquer som. Todo som pode ser um evento musical, o que leva Schaeffer a cunhar o termo “objeto sonoro”, quando um som é escutado ou utilizado por um compositor unicamente por suas qualidades estéticas, extraído de qualquer relação semiótica com outro evento externo a ele. O autor cita como exemplo o som do galope de um cavalo, quando não é composicionalmente utilizado e analisado como sendo o signo do animal cavalo, mas sim em relação exclusivamente às suas características acústicas e possibilidades de manipulação destas (SCHAEFFER, 1966).

A conceitualização do objeto sonoro de Schaeffer pode fazer com que a definição de música pareça um tanto incerta, já que, se qualquer som pode ser música, não parece haver uma característica geral de todos os sons que os unifiquem sob o termo “música”. Porém, Murray Schafer, no verão de 1964, traz uma possível característica unificadora: a intenção. Junto à turma de estudantes da North York Summer Music School, o compositor elabora a definição de música como “uma organização de sons com a intenção de ser ouvida” (SCHAFER, 2011).

O próprio autor afirma que essa descrição seria apenas a base para uma definição, que posteriormente necessitaria de mais refinamento. Ainda que ele não volte a abordá-la no livro, sugiro algumas questões a partir dela como direcionamento para esse possível refinamento.

Uma das perguntas que advém da definição de Schafer de música é: de quem deve ser a intenção de ouvir determinado som como música? Apenas do compositor, ou de quem o escuta? Se for apenas de quem o escuta, uma pessoa poderia simplesmente afirmar que qualquer som pode ser música. Porém, como Schafer comenta que esses sons devem estar organizados de alguma forma, irei considerar, neste e nos dois artigos seguintes, que essa intenção deve partir do compositor.

Ainda que, como o próprio autor informa, e como as perguntas levantadas indicam, seja uma definição incompleta, pode-se dizer que, da maneira que estou propondo pensarmos no termo, ela consegue abarcar desde as suítes de Bach até os helicópteros de Stockhausen, já que, em ambos os casos, há uma intenção musical por parte dos compositores.




Mas se o que conta para a definição de música for apenas a intenção do compositor, como saber qual foi sua intenção no caso dos sons de um filme ou game? Para tentar dar um passo em direção a uma possível resposta a essa pergunta, na segunda parte deste artigo, trarei algumas definições existentes na literatura sobre o que são “efeitos sonoros”, assim como a maneira que os enxergo em relação às suas possíveis diferenças com a música.


Notas

.1‘machine age’ music (GRIFFITHS, 1994, p. 100)


Referências

ADLER, Guido. The Scope, Method and Aim of Musicology, 1885.

BRITO, Teca Alencar de. Música, infância e educação: jogos do criar. Música na Educação Básica. Brasília: 2013.

CASTANHEIRA, Carolina Prizzi. De Institutione Musica, de Boécio - Livro 1: tradução e comentários. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Minas Gerais, 2009. Área de concentração em Letras: Estudos Literários. Belo Horizonte, 2009. 154p.

COLLINS, Karen. Game sound : an introduction to the history, theory and practice of video game music and sound design / Karen Collins. Massachusetts Institute of Technology. MIT Press. Cambridge, 2008. 204p.

FUBINI, Enrico. Estética da Música. - (Convite à música; 13) - Edições 70. Lisboa, 2008.

GRIFFITHS, Paul. Modern Music: a concise history. Revised edition. World of Art. Thames and Hudson. New York, 1994.

GROUT, Donald J; PALISCA, Claude V. História da música ocidental. Traduzido por: Ana Lisboa Faria: Gradiva. Lisboa, 2007. 759p.

HOPPIN, Richard. Medieval Music. The Norton Introduction to Music History (1st ed.). New York, New York: W. W. Norton & Company. ISBN 978-0-393-09090-1, 1978..

PASSOS, Leonardo Porto. “Krautrock: Stockhausen, elektronische musik e o legado para a música pop”. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. ISSN 2526-6187. Data da publicação: 4 de abril de 2021. Link: https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2021/04/04/krautrock-stockhausen-elektronische-musik-e-o-legado-para-a-musica-pop/

REANEY Gilbert, ed. (1955). Early Fifteenth-Century Music. Corpus mensurabilis musicae 11. Vol. 1, Works of Baude Cordier, Johannis Cesaris, Johannis Carmen, Johannis Tapissier. Cambridge: American Institute of Musicology. OCLC 83198152.

SANTAELLA, Lucia. Matrizes da linguagem e pensamento: sonora visual verbal: aplicações na hipermídia / Lucia Santaella - 3. Ed. - São Paulo: 5. Reimp., 2019 - Iluminuras: FAPESP, 2005.

SCHAEFFER, Pierre. Treatise on Musical Objects: an essay across disciplines. Translated by Christine North and John Dack. University of California Press. Oakland, California, 2017.

SCHAFER, R. Murray. O ouvido pensante/R. Murray Schafer; tradução de Marisa Trench de O. Fonterrada, Magda R. Gomes da Silva, Maria Lúcia Pascoal; revisão técnica de Aguinaldo José Gonçalves. - 2.ed. - São Paulo: Ed. Unesp, 2011. 408p.

TOOP, Richard. Stockhausen, Karlheinz. Grove Music Online. Oxford: Oxford University Press. doi:10.1093/gmo/9781561592630.article.26808, 2001


Como referenciar este artigo:

YGLESIAS, Vinicius. A relação entre música e efeitos sonoros - parte 1. Blog C4, Campinas: Nics; Unicamp, 19 ago. 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em: https://unicampc4.blogspot.com/2022/08/a-relacao-entre-musica-e-efeitos.html