“Jogos mecânicos”: uma proposta taxonômica

Leonardo Porto Passos

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Em design de jogos¹ e ludologia,² é recorrente o uso do termo “jogos analógicos” para designar “[…] jogos que utilizam dados, cartas, tabuleiros, lápis, papel, fichas e/ou elementos performativos”³ (ANALOG…, [2014?], n.p.). Mas antes de aprofundar nesse tipo de jogo, considera-se necessário tratar aqui do termo usual “analógico”.

Antes de tudo, convém recorrer ao significado lexical da palavra “analógico”, que pode ser utilizado como 1. adjetivo: (a) relativo a analogia, (b) em que há analogia, (c) que se funda ou se baseia na analogia, devido à analogia, (d) em que as palavras estão agrupadas pelas afinidades de sentido existentes entre elas (diz-se de raciocínio); e também como 2. substantivo masculino: (informática) forma de medida ou representação de grandezas na qual um sensor ou indicador acompanha, de forma contínua, sem hiatos nem lacunas, a variação da grandeza que está sendo medida ou representada (ANALÓGICO…, 2009).

Há ainda duas outras acepções para o termo: 1. (física) diz-se de uma grandeza física medida por uma função contínua ou de um sinal cujas variações são contínuas; e 2. (informática) diz-se de um computador em que as informações a tratar são representadas por sinais analógicos (ANALÓGICO…, 2015).

Analógico vem de “análogo”, ou seja, “parecido, semelhante”. Uma função análoga à outra é uma função parecida com essa outra, infinitesimalmente parecida. Pode-se alegar que o termo “analógico” é empregado em jogos porque eles fazem “analogia” a algo, por exemplo: o xadrez faz analogia a um embate entre dois reinos; o Banco Imobiliário faz analogia aos mercados imobiliário e financeiro. Porém, ainda assim, o termo “analógico” é questionável, já que muitos jogos são abstratos e não fazem qualquer tipo de analogia a qualquer tema, como é o caso do go, dominó, gamão etc.

Diante das concepções lexicais, fica difícil encontrar qualquer relação com jogos. Outro ponto de vista em relação ao termo “analógico” pode ser encontrado em Torner, Trammell e Waldron, no manifesto introdutório do periódico acadêmico Analog Game Studies, o principal relacionado ao tema:

Os jogos analógicos têm sua própria terminologia e destaque há séculos. São aqueles produtos que nem sempre são mediados por tecnologias computacionais, mas que, no entanto, exemplificam formas culturais contemporâneas. […] o termo “analógico” só existe em comparação negativa ao digital, de modo que nossas formas de expressão digitais atuais produzem sua herança analógica como subproduto.⁴ (TORNER; TRAMMELL; WALDRON, 2016, p. 2, tradução e grifo nossos).

Nominar algo em contraposição a outra coisa pode ser contraproducente, na medida em que há chances de se incorrer em equívocos por conta da generalização. Considerar como analógico tudo o que não é digital no mínimo tira a especificidade do analógico.

Em busca de evitar os equívocos mencionados acima, podemos pensar ainda em outra interpretação do termo, como a utilizada pelo campo da eletrônica, que se divide em analógica e digital: analógico é o processamento eletrônico contínuo (números reais), digital é o processamento eletrônico discreto (números inteiros) – números binários são uma das possíveis representações de valores digitais, atualmente a mais usada pela sua vantagem computacional. O formato analógico é composto por um sinal contínuo, que varia em função do tempo, passando por todos os valores intermediários possíveis (algo como 0.000…1, 0.000…2, 0.000…3 e assim por diante).⁵ Já o sinal digital tem valores com números descontínuos no tempo e na amplitude, ou seja, valores discretos (exemplo: 0, 1, 2, 3, 4, 5 etc.), diferentemente do analógico, com variações infinitas entre cada um de seus valores (SINAL, 2014, n.p.).

Tudo o que é digital é eletrônico, mas nem tudo o que é analógico é eletrônico. Uma balança ou um relógio podem ser analógicos sem serem eletrônicos, sendo puramente mecânicos. Fitas cassete e VHS, microfones, pedais de efeitos para guitarra, amplificadores valvulados, são todos analógicos e também eletrônicos. Desse modo, nem tudo o que não é digital é, por conseguinte, analógico. Definir analógico como “não digital” implica em dois problemas, de acordo com Jonathan Sterne:

Primeiro, analógico denota um processo técnico específico, onde uma qualidade é usada para representar outra. Um violino não é uma tecnologia analógica, mas um sintetizador é devido às relações definidas nas quais seu sistema se baseia, como tensão de controle e afinação do oscilador. Em segundo lugar, todo o mundo fora do processamento digital não é analógico, porque o analógico representa uma relação tecnocultural particular com a natureza. A natureza pode muito bem ser concebida como tendo análogos dentro dela, mas não pode ser analógica.⁶ (STERNE, 2014, n.p., tradução nossa).

Diante disso, proponho aqui, como conjectura inicial lançada neste artigo, o termo “jogos mecânicos”, por considerá-lo mais efetivo para designar tais tipos de jogos, já que “mecânico” se refere a algo que produz movimento, e é relativo à “mecânica”, que é o ramo da física que estuda o comportamento de sistemas (como os de equilíbrio ou movimento dos corpos) submetidos à ação de uma ou mais forças. Dessa forma, “jogo mecânico” não é um termo que simplesmente se opõe a “digital”.

Após a proposta de uma taxonomia que considero mais apropriada, faz-se necessário definir o que são propriamente jogos mecânicos. Nessa perspectiva, Dias e Farbiarz (2020) apontam que são aqueles em que as regras precisam ser aprendidas, recordadas e mantidas pelos jogadores, ainda que possam ser negociadas e mesmo revistas – ao contrário do que ocorre nos games –, e o estado atual de jogo é visível na configuração das peças, cartas, dados poliédricos, miniaturas e demais utensílios ou dos corpos no espaço. Conforme Whitehill (2009), podem ser subdivididos em jogos de tabuleiro, jogos de cartas, jogos de dados, jogos de palavras, jogos de dominó e jogos lineares de colocação de peças, jogos de destreza e jogos de memória, aos quais acrescento aqui também os jogos de interpretação de papéis, como os RPGs (role-playing games) e os LARP (live action role-playing, ou jogo de interpretação ao vivo), e os jogos de gestos, como pedra, papel e tesoura (também chamado de joquempô, do japonês jankenpon), jogado somente com uma das mãos, e detetive, que é jogado com piscares de olhos.

O termo “jogos mecânicos” é apenas uma ideia inicial, uma sugestão a partir de meu entendimento em relação ao termo usual “jogos analógicos”, e por ser inicial e conjectural, carece de desenvolvimento mais aprofundado,  tratando-se algo para ser posteriormente debatido e contrastado com mais dados.


Notas:

¹ O design de jogos trata da elaboração, criação e desenvolvimento de jogos, sejam digitais ou não. É o campo de atuação do designer de jogos, o profissional cuja função é conceber uma ideia inicial e, a partir dela, projetar o conceito de um jogo para que seja desenvolvido pelos demais profissionais (artistas, programadores, profissionais de áudio, animadores etc.), registrando tudo em um documento chamado game design document (GDD) para que toda a equipe tenha pleno acesso a tudo o que foi definido para o escopo do jogo. ² Também conhecida pelo termo em inglês Game Studies, é a disciplina que estuda jogos e atividades lúdicas (FRASCA, 1999).
³ “[…] games that use dice, cards, boards, pencil, paper, tokens, and/or performative elements.”
“Analog games have had their own terminology and prominence for centuries. They are those products that are not always mediated through computer technologies, but which nevertheless exemplify contemporary cultural forms. […] the term “analog” only exists by way of negative comparison to the digital, such that our present-day digital forms of expression produce their analog heritage as a byproduct.”
Tratam-se apenas de exemplos para facilitar a compreensão, já que não há como definir o infinitesimal em números, pois sempre haverá um número ainda menor (considerando o conjunto dos números reais).
“First, analog denotes a specific technical process, where one quality is used to represent another. A violin is not an analog technology, but a synthesizer is because of the defined relationships on which its system is based, such as control voltage and oscillator pitch. Second, the entire world outside of digital processing is not analog, because analog represents a particular technocultural relationship to nature. Nature may well be conceived as having analogs within it, but it cannot be analog.”

Referências:

ANALOG GAME STUDIES. About/Our mission. [S.l.: s.n.], [2014?]. ISSN: 2643-7112. Disponível em: <http://analoggamestudies.org/about/our-mission/>. Acesso em: 28 abr. 2022.

ANALÓGICO. In: HOUAISS, Antonio (Instituto). Houaiss Eletrônico. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. Versão 3.0. CD-ROM.

ANALÓGICO. In: MICHAELIS, Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. [Online]. São Paulo: Melhoramentos, 2015. ISBN: 978-85-06-04024-9. Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/anal%C3%B3gico/>. Acesso em: 27 abr. 2022.

DIAS, Cynthia Macedo; FARBIARZ, Jackeline Lima. Criação de jogo analógico na Educação Profissional em Saúde: colaboração e dialogismo no desenvolvimento de um olhar crítico. In: SBGAMES, 19., 2020, Recife/PE. Anais…: Games and Health – Full Papers. Porto Alegre/RS: Sociedade Brasileira de Computação, 2020. ISSN: 2179-2259. Disponível em: <http://www.sbgames.org/proceedings2020/JogosSaudeFull/209733.pdf>. Acesso em: 27 abr. 2022.

FRASCA, Gonzalo. Ludology meets narratology: similitude and differences between (video)games and narrative. Parnasso, Helsinki, n. 3, p. 365-371, 1999. Disponível em: <http://ludology.typepad.com/weblog/articles/ludology.htm>. Acesso em: 27 maio 2021.

SINAL analógico ou digital? Entenda as tecnologias e suas diferenças. Techtudo, Rio de Janeiro, 2 dez. 2014. Disponível em: <http://www.techtudo.com.br/noticias/2014/12/sinal-analogico-ou-digital-entenda-tecnologias-e-suas-diferencas.ghtml>. Acesso em: 20 jun. 2022.

STERNE, Jonathan. Analog [draft]. Culture Digitally, may 15, 2014. Disponível em: <http://culturedigitally.org/2014/05/analog-draftdigitalkeywords/>. Acesso em: 28 abr. 2022.

TORNER, E.; TRAMMELL, A.; WALDRON, E. L. Reinventing analog game studies: introductory manifesto. TRAMMELL, A.; TORNER, E.; WALDRON, E. L. (Eds.). Analog Game Studies. Pittsburgh: ETC Press, 2016, v. 1, p. 1-5.

WHITEHILL, Bruce. Toward a classification of non-electronic table games. In: BOARD GAME STUDIES COLLOQUIUM, 11., 2008, Lisboa. Proceedings… Lisboa: Associação Ludus, 2009, pp. 53-63. Disponível em: <http://jnsilva.ludicum.org/PBGS08.pdf>. Acesso em: 28 abr. 2022.


Como referenciar este artigo:

PASSOS, Leonardo Porto. “Jogos mecânicos”: uma proposta de taxonomia. Blog C4, Campinas: Nics; Unicamp, 26 ago. 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em: <http://unicampc4.blogspot.com/2022/08/jogos-mecanicos-uma-proposta-taxonomica.html>.