Música na cultura surda: não mais um mito, um fato!

Leonardo Arruda


Certo dia, enquanto pesquisava artigos e livros para incluir no meu projeto de mestrado, me deparei com um evento de música eletrônica chamado Deaf Rave. Por conta do nome do evento conter deaf (surdo, em português), chamou minha atenção. Então, devido ao meu objeto de estudo ser música e surdez, fiz questão de pesquisar mais sobre o evento. Em alguns vídeos  me deparei com pessoas surdas em uma festa conversando através da língua gestual de sinais e dançando no ritmo da música. Escolhi investigar mais a fundo sobre o evento e percebi que a música na cultura surda é uma realidade mais presente do que eu imaginava e por isso, abordarei este assunto neste blog. Boa leitura! 

Antes de ser somente o nome de um evento, a Deaf Rave é um projeto que realiza eventos e workshops musicais para a comunidade surda. Este projeto tem como fundador Troi Lee, cujo nome artístico é “DJ Chinaman”, que é surdo e aficionado de música desde a infância. O Deaf Rave surgiu com o propósito de oferecer uma plataforma para artistas e performances surdos apresentarem suas estéticas musicais, além de promover a identidade surda/deficiente auditivo e divulgar a cultura surda e levar música para todos, inclusive ouvintes. Além disso, este projeto oferece serviços de alocações de sistemas de som, contratação de DJs, workshops para DJs, workshops de linguagem de gestos básicos, consciência de surdos, palestras sobre o Deaf Rave, consultoria, entre outros assuntos relacionados. 

Nos workshops para DJ são apresentados conteúdos sobre produção musical, conceitos de teoria musical, noções de composição de batidas (beats), técnicas e maneiras de captar uma voz ou instrumentos musicais, além de dicas e técnicas para operação de uma Digital Audio Workstation (DAW). Geralmente, a equipe do Deaf Rave convida para os workshops de produtores musicais, engenheiros de mixagem e gravação, entre outros profissionais da área. 

O Troi Lee é afiliado de uma empresa de áudio chamada Woojer. Entre alguns produtos fabricados pela empresa, tem-se uma jaqueta chamada de Woojer Vest. Esta jaqueta tem como propósito promover uma experiência tátil de alta fidelidade, oferecendo 360 graus de imersão, podendo ser usada em jogos, filmes, VR (Virtual Reality) e música. Além disso, esta jaqueta permite que as baixas frequências sejam sentidas por sensores hápticos espalhadas por toda a jaqueta. Inclusive, quando é realizado este tipo de workshop, alguns alunos usam o Woojer Vest para perceberem as músicas demonstradas durante o curso, além de sentirem as músicas que eles próprios produziram (Lee, 2016).


Imagem da Woojer Vest. 

Link: https://www.woojer.com/products/vest



Vídeo das pessoas surdas no workshop para DJs

Outro serviço oferecido pelo grupo Deaf Rave são festivais de música, onde é comum encontrar pessoas surdas dançando, conversando e se apresentando artisticamente. Os festivais contam com músicas, canções em sinais e performances visuais para um público diverso, ocorrendo em diferentes edições em todo o Reino Unido, na Indonésia e no Japão. De acordo com Lee (2016), os festivais possuem caixas acústicas com suporte para altas e baixas frequências e luzes coloridas. Em toda edição, os técnicos de som são responsáveis por configurar e equalizar as caixas acústicas, dando um ganho de amplitude na região dos graves e médios para que os artistas surdos possam sentir nitidamente as vibrações das músicas, auxiliando-os na hora das suas apresentações. Em relação às luzes coloridas, elas servem para criar o ambiente de balada e a imersão visual das pessoas surdas ocorre nas apresentações dos artistas surdos, que realizam suas performances de canção e poesia usando a língua gestual de sinais. Isso mostra que, tal como descreve Haguiara-Cervellini (1983, 1987 e 1999), as pessoas surdas possuem uma musicalidade (Haguiara-Cervellini, 2003) conforme a preferência pessoal de cada um, criando sua maneira de expressão.



Vídeo sobre a festa organizada e realizada pela Deaf Rave.


No Brasil, ainda não há um projeto ou grupo (até onde eu saiba) que proporcione eventos musicais para que pessoas da comunidade surda possam apresentar artisticamente a sua estética musical. Em 2013, com proposta semelhante à do Deaf Rave, ocorreu um evento musical chamado SenCity, entretanto este evento era promovido pela empresa holandesa Skywalk Foundation, sem nenhuma produção brasileira, a qual realizou uma edição do seu evento em território brasileiro [Arruda, 2022]. No Brasil, pode-se encontrar bandas majoritariamente com integrantes surdos que fazem apresentações em eventos musicais, mas geralmente eventos que não especificamente são voltados para a mesma finalidade que a do Deaf Rave. Alguns exemplos de bandas brasileiras com integrantes surdos, são: 1) banda Ab’Surdos (conservatório Estadual de Música Cora Pavan Capparelli Uberlândia – MG); 2) Banda Surdodum (grupo musical de Brasília); e 3) Batuqueiro do Silêncio (banda que tocam músicas e ritmos tradicionais da cultura pernambucana - Recife - PE) (Arruda, 2022). 

Dessa forma, pode inferir-se que a música, em certas ocasiões, está presente na comunidade surda, justamente por existir eventos musicais voltadas para essa comunidade e grupos musicais compostos por pessoas surdas, além do interesse dessas pessoas quererem ter experiências musicais. Evidentemente que há pontos de vista e questionamentos internos da própria comunidade surda sobre se a música pode ou não ser parte da cultura surda. De acordo com a minha aproximação com pessoas surdas e com meus estudos, acredito que a música poderia estar presente como forma de expressão na cultura surda, entretanto é necessário investigar outras maneiras de se fazer música com, de e para surdos. Claramente, uma pessoa surda terá a sua musicalidade, a sua maneira de compor, assim, criando uma estética própria, até porque a existência e relevância da música na cultura surda não é mais um mito, e sim um fato! 


Referências Bibliográficas

ARRUDA, Leonardo. "A relação entre música e Cultura Surda". Blog C4, Campinas, NICS; UNICAMP, 20 maio 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em: <https://unicampc4.blogspot.com/2022/04/guitarra-eletrica-uma-sonoridade_68.html>

HAGUIARA-CERVELLINI, Nadir. A criança deficiente auditiva e suas reações à música. Dissertação de mestrado em Ciências - Audiologia, PUC-SP, 1983. (Publicada em São Paulo pela Editora Moraes, 1986).

__________. & César, Isabel. O adolescente deficiente auditivo e a expressão de sua musicalidade - Pesquisa patrocinada pelo CNPq/PUC-SP, 1987. Não publicada.

__________. O surdo enquanto ser musical. Tese de Doutorado, PUC-SP, 1999.

__________. A musicalidade do surdo: representação e estigma. São Paulo: Plexus Editora, 2003. 

LEE, T. Deaf Rave on BBC Ouch! (With Subtitles). [S.I.: s.n], 2016. 1 vídeo (3 min). Publicado pelo canal The Midi Music Company. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=WJC4D1mGCfE>. 


Como referenciar este artigo:

ARRUDA, Leonardo. " Música na cultura surda: não mais um mito, um fato!". Blog C4, Campinas, NICS; UNICAMP, 05 agosto 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em: <https://unicampc4.blogspot.com/2022/08/musica-na-cultura-surda-nao-mais-um.html>