A segunda década do século XIX mostrava grandes transformações socioculturais
ao mundo. A Primeira Guerra Mundial alterava de maneira drástica as relações
políticas entre diversas nações, bem como todo o panorama cultural do globo; o
rádio ampliava as comunicações humanas; os automóveis se expandiam como
verdadeira revolução industrial; no campo das artes, alastravam-se movimentos
de vanguarda, como o cubismo, o dadaísmo e o jazz; Charles Chaplin encantava o
mundo com seus filmes, assim como o faziam outras produções do cinema mudo;
Albert Einstein tecia valiosas contribuições à ciência; e a Rússia vivia um
período de profundas mudanças em decorrência de sua grande Revolução, que
também afetava as produções artísticas, que eram efervescentes naquele período
da história russa. Foi nesse contexto que surgiu uma das mais importantes
correntes críticas da literatura, o Formalismo Russo, que daria o pontapé
inicial para os estudos modernos no campo das Letras.
Tzvetan Todorov, importante estudioso e divulgador das ideias dos
formalistas, assim como Roman Jakobson, um de seus mais célebres membros,
alegam que o nome dado ao grupo adveio de uma falácia, já que era utilizado por
seus detratores de forma pejorativa. Mas apesar de rejeitado, o termo acabou se
consagrando.
Empiristas e positivistas, os formalistas russos ignoravam premissas
filosóficas ou metodológicas, portanto, toda conclusão abstrata. Por se tratar
de um grupo de críticos militantes, rejeitavam as doutrinas simbolistas quase
místicas que haviam influenciado a crítica literária, e munidos de grande
vontade prática e científica, focaram a atenção para os aspectos intrínsecos do
texto literário. Desejavam chegar a uma ciência da literatura, que tivesse por
objeto não a literatura, mas a “literariedade”
do texto, ou seja, aquilo que lhe confere caráter literário. Dentre os seus
membros, destacavam-se Mikhail Bakhtin, Vladimir Propp, Viktor Chklovski, Óssip
Brik, Yuri Tynianov, Boris Eikhenbaum, Boris Tomachevski, além do já citado
Jakobson.
O
Círculo Linguístico de Moscou e a Opojaz
Alguns proeminentes alunos da Universidade de Moscou fundaram o
Círculo Linguístico de Moscou, no inverno de 1914, com o objetivo de realizar
estudos nos campos da poética e da linguística, que foram inovadores desde o
início por estabelecer estudos paralelos entre a literatura e a linguística,
preocupação que seria dominante nos trabalhos realizados pelo grupo. O termo função poética foi cunhado nesta época, instituindo
importantes considerações a respeito da linguagem literária.
O Círculo Linguístico de Moscou contava com importantes poetas,
tais como Maiakovski, Pasternak, Mandelstam e Assiéiev. Tal aliança não se deu
ao acaso, mas às intenções semelhantes dos formalistas e dos poetas
vanguardistas, que estavam cansados da velha estética e buscavam novas formas
em meio às profundas alterações da revolução. A poesia pretendia seguir por
novos rumos estéticos, enquanto a crítica já não se importava mais com a
dicotomia existente entre os gêneros clássico e romântico, considerando tais
preocupações como ultrapassadas.
A primeira publicação de um dos membros, A Ressurreição da Palavra (1914), de Viktor Chklovski, foi seguida
da coletânea Poética (1916), de Óssip
Brik, que tencionava divulgar os primeiros trabalhos do grupo. Em 1917, surgiu
a Opojaz (Sociedade para os Estudos da Linguagem Poética), em São Petersburgo, da
qual eram membros os dois autores citados.
A
natureza autônoma da linguagem poética
O Formalismo Russo, pela sua diversidade de pensamentos e
análises, não produziu uma doutrina unificada que servisse como padrão para
todos os seus estudos, como atesta Boris Eikhenbaum (1973b, p. 3-4):
“Realmente, não falamos, nem discutimos sobre nenhuma metodologia. Falamos e
podemos falar unicamente de alguns princípios teóricos que nos foram sugeridos
pelo estudo de uma matéria concreta e de suas particularidades específicas, e
não por este ou aquele sistema completo, metodológico ou estético.”
Desde seus primeiros estudos, o Formalismo Russo se caracterizou
pela recusa de abordagens extrínsecas ao texto. A psicologia, sociologia,
filosofia etc., que serviam de base para muitos estudos literários realizados
até então, não poderiam constituir o escopo de análise da obra literária, que
deveria ser efetuada por meio dos constituintes estéticos, sem relevar aspectos
externos. Em uma importante coletânea de textos traduzida para o português como
Teoria da literatura: formalistas russos,
Eikhenbaum (1973b, p. 5) descreve de forma sucinta a premissa do grupo do qual
fazia parte: “O que nos caracteriza não é o formalismo enquanto teoria
estética, nem uma metodologia representando um sistema científico definido, mas
o desejo de criar uma ciência literária autônoma a partir das qualidades
intrínsecas do material literário.”.
As opiniões dos formalistas entraram em conflito com os teóricos
de inspiração marxista, que consideravam que a nova poética não deveria ignorar
as realidades sociais e a sua relação com as manifestações artísticas. Os
formalistas consideravam que a obra literária não era um mero veículo de ideias,
tampouco uma reflexão sobre a realidade social; era um fato material plausível
de análise, formada por palavras, não por objetos ou sentimentos, e seria um
erro considerá-la como a expressão do pensamento de um autor.
Os formalistas tencionavam criar uma ciência da literatura, que
deveria se afastar de quaisquer aspectos extraliterários, e para que isso fosse
possível, a literatura deveria ser estudada por si só, daí a necessidade de
conceitualização da literariedade,
que daria o respaldo necessário para aquilo que se almejava: o estudo da
natureza autônoma da linguagem poética e sua especificidade como um objeto de
estudo da crítica literária.
Em breve traremos a conclusão deste artigo. Obrigado pela leitura e até lá.
Referências:
CHKLOVSKI, Viktor. A arte como procedimento. In: TOLEDO, Dionísio de Oliveira (Org.).
Teoria da literatura: formalistas russos. 1. ed. reimp. Trad. Ana Maria
Ribeiro Filipouski, Maria Aparecida Pereira, Regina L. Zilberman e Antônio Carlos
Hohlfeldt. Porto Alegre: Editora Globo, 1973a, p. 39-56.
EIKHENBAUM, Boris. A teoria do “método formal”. In: TOLEDO, Dionísio de Oliveira
(Org.). Teoria da literatura: formalistas russos. 1. ed. reimp. Trad.
Ana Maria Ribeiro Filipouski, Maria Aparecida Pereira, Regina L. Zilberman e
Antônio Carlos Hohlfeldt. Porto Alegre: Editora Globo, 1973b, p. 3-38.
JAKOBSON, Roman. Do realismo artístico. In: TOLEDO, Dionísio de Oliveira (Org.). Teoria
da literatura: formalistas russos. 1. ed. reimp. Trad. Ana Maria Ribeiro
Filipouski, Maria Aparecida Pereira, Regina L. Zilberman e Antônio Carlos
Hohlfeldt. Porto Alegre: Editora Globo, 1973c, p. 119-127.
PROPP, Vladimir I.
Morfologia do conto maravilhoso. 2. ed. Trad. Jasna Paravich Sarhan. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
SCHNAIDERMAN, Boris. Prefácio. In: TOLEDO, Dionísio de Oliveira (Org.). Teoria
da literatura: formalistas russos. 1. ed. reimp. Trad. Ana Maria Ribeiro
Filipouski, Maria Aparecida Pereira, Regina L. Zilberman e Antônio Carlos
Hohlfeldt. Porto Alegre: Editora Globo, 1973d, p. IX-XXII.
PASSOS, Leonardo Porto. O Formalismo Russo e suas contribuições para os estudos da narrativa - parte 1. Blog C4, Campinas: Nics; Unicamp, 21 nov. 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em: <http://unicampc4.blogspot.com/2022/11/formalismo-russo-1.html>.