O Formalismo Russo e suas contribuições para os estudos da narrativa - parte 1

Leonardo Porto Passos

 

A segunda década do século XIX mostrava grandes transformações socioculturais ao mundo. A Primeira Guerra Mundial alterava de maneira drástica as relações políticas entre diversas nações, bem como todo o panorama cultural do globo; o rádio ampliava as comunicações humanas; os automóveis se expandiam como verdadeira revolução industrial; no campo das artes, alastravam-se movimentos de vanguarda, como o cubismo, o dadaísmo e o jazz; Charles Chaplin encantava o mundo com seus filmes, assim como o faziam outras produções do cinema mudo; Albert Einstein tecia valiosas contribuições à ciência; e a Rússia vivia um período de profundas mudanças em decorrência de sua grande Revolução, que também afetava as produções artísticas, que eram efervescentes naquele período da história russa. Foi nesse contexto que surgiu uma das mais importantes correntes críticas da literatura, o Formalismo Russo, que daria o pontapé inicial para os estudos modernos no campo das Letras.

Tzvetan Todorov
Tzvetan Todorov

Tzvetan Todorov, importante estudioso e divulgador das ideias dos formalistas, assim como Roman Jakobson, um de seus mais célebres membros, alegam que o nome dado ao grupo adveio de uma falácia, já que era utilizado por seus detratores de forma pejorativa. Mas apesar de rejeitado, o termo acabou se consagrando.

Empiristas e positivistas, os formalistas russos ignoravam premissas filosóficas ou metodológicas, portanto, toda conclusão abstrata. Por se tratar de um grupo de críticos militantes, rejeitavam as doutrinas simbolistas quase místicas que haviam influenciado a crítica literária, e munidos de grande vontade prática e científica, focaram a atenção para os aspectos intrínsecos do texto literário. Desejavam chegar a uma ciência da literatura, que tivesse por objeto não a literatura, mas a “literariedade” do texto, ou seja, aquilo que lhe confere caráter literário. Dentre os seus membros, destacavam-se Mikhail Bakhtin, Vladimir Propp, Viktor Chklovski, Óssip Brik, Yuri Tynianov, Boris Eikhenbaum, Boris Tomachevski, além do já citado Jakobson.

Roman Jakobson

O Círculo Linguístico de Moscou e a Opojaz

Alguns proeminentes alunos da Universidade de Moscou fundaram o Círculo Linguístico de Moscou, no inverno de 1914, com o objetivo de realizar estudos nos campos da poética e da linguística, que foram inovadores desde o início por estabelecer estudos paralelos entre a literatura e a linguística, preocupação que seria dominante nos trabalhos realizados pelo grupo. O termo função poética foi cunhado nesta época, instituindo importantes considerações a respeito da linguagem literária.

O Círculo Linguístico de Moscou contava com importantes poetas, tais como Maiakovski, Pasternak, Mandelstam e Assiéiev. Tal aliança não se deu ao acaso, mas às intenções semelhantes dos formalistas e dos poetas vanguardistas, que estavam cansados da velha estética e buscavam novas formas em meio às profundas alterações da revolução. A poesia pretendia seguir por novos rumos estéticos, enquanto a crítica já não se importava mais com a dicotomia existente entre os gêneros clássico e romântico, considerando tais preocupações como ultrapassadas.

Viktor Chklovski

A primeira publicação de um dos membros, A Ressurreição da Palavra (1914), de Viktor Chklovski, foi seguida da coletânea Poética (1916), de Óssip Brik, que tencionava divulgar os primeiros trabalhos do grupo. Em 1917, surgiu a Opojaz (Sociedade para os Estudos da Linguagem Poética), em São Petersburgo, da qual eram membros os dois autores citados.

A natureza autônoma da linguagem poética

O Formalismo Russo, pela sua diversidade de pensamentos e análises, não produziu uma doutrina unificada que servisse como padrão para todos os seus estudos, como atesta Boris Eikhenbaum (1973b, p. 3-4): “Realmente, não falamos, nem discutimos sobre nenhuma metodologia. Falamos e podemos falar unicamente de alguns princípios teóricos que nos foram sugeridos pelo estudo de uma matéria concreta e de suas particularidades específicas, e não por este ou aquele sistema completo, metodológico ou estético.”

Desde seus primeiros estudos, o Formalismo Russo se caracterizou pela recusa de abordagens extrínsecas ao texto. A psicologia, sociologia, filosofia etc., que serviam de base para muitos estudos literários realizados até então, não poderiam constituir o escopo de análise da obra literária, que deveria ser efetuada por meio dos constituintes estéticos, sem relevar aspectos externos. Em uma importante coletânea de textos traduzida para o português como Teoria da literatura: formalistas russos, Eikhenbaum (1973b, p. 5) descreve de forma sucinta a premissa do grupo do qual fazia parte: “O que nos caracteriza não é o formalismo enquanto teoria estética, nem uma metodologia representando um sistema científico definido, mas o desejo de criar uma ciência literária autônoma a partir das qualidades intrínsecas do material literário.”.

Boris Eikhenbaum

As opiniões dos formalistas entraram em conflito com os teóricos de inspiração marxista, que consideravam que a nova poética não deveria ignorar as realidades sociais e a sua relação com as manifestações artísticas. Os formalistas consideravam que a obra literária não era um mero veículo de ideias, tampouco uma reflexão sobre a realidade social; era um fato material plausível de análise, formada por palavras, não por objetos ou sentimentos, e seria um erro considerá-la como a expressão do pensamento de um autor.

Os formalistas tencionavam criar uma ciência da literatura, que deveria se afastar de quaisquer aspectos extraliterários, e para que isso fosse possível, a literatura deveria ser estudada por si só, daí a necessidade de conceitualização da literariedade, que daria o respaldo necessário para aquilo que se almejava: o estudo da natureza autônoma da linguagem poética e sua especificidade como um objeto de estudo da crítica literária.

Em breve traremos a conclusão deste artigo. Obrigado pela leitura e até lá.

 

Referências:

CHKLOVSKI, Viktor. A arte como procedimento. In: TOLEDO, Dionísio de Oliveira (Org.). Teoria da literatura: formalistas russos. 1. ed. reimp. Trad. Ana Maria Ribeiro Filipouski, Maria Aparecida Pereira, Regina L. Zilberman e Antônio Carlos Hohlfeldt. Porto Alegre: Editora Globo, 1973a, p. 39-56.

EIKHENBAUM, Boris. A teoria do “método formal”. In: TOLEDO, Dionísio de Oliveira (Org.). Teoria da literatura: formalistas russos. 1. ed. reimp. Trad. Ana Maria Ribeiro Filipouski, Maria Aparecida Pereira, Regina L. Zilberman e Antônio Carlos Hohlfeldt. Porto Alegre: Editora Globo, 1973b, p. 3-38.

JAKOBSON, Roman. Do realismo artístico. In: TOLEDO, Dionísio de Oliveira (Org.). Teoria da literatura: formalistas russos. 1. ed. reimp. Trad. Ana Maria Ribeiro Filipouski, Maria Aparecida Pereira, Regina L. Zilberman e Antônio Carlos Hohlfeldt. Porto Alegre: Editora Globo, 1973c, p. 119-127.

PROPP, Vladimir I. Morfologia do conto maravilhoso. 2. ed. Trad. Jasna Paravich Sarhan. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

SCHNAIDERMAN, Boris. Prefácio. In: TOLEDO, Dionísio de Oliveira (Org.). Teoria da literatura: formalistas russos. 1. ed. reimp. Trad. Ana Maria Ribeiro Filipouski, Maria Aparecida Pereira, Regina L. Zilberman e Antônio Carlos Hohlfeldt. Porto Alegre: Editora Globo, 1973d, p. IX-XXII.

  

Como referenciar este artigo:
PASSOS, Leonardo Porto. O Formalismo Russo e suas contribuições para os estudos da narrativa - parte 1. Blog C4, Campinas: Nics; Unicamp, 21 nov. 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em: <http://unicampc4.blogspot.com/2022/11/formalismo-russo-1.html>.