O Formalismo Russo e suas contribuições para os estudos da narrativa - parte 2

Leonardo Porto Passos

 

A literariedade

Roman Jakobson cunhou uma das mais importantes considerações da postura formalista, que acabou se tornando quase um manifesto do movimento:

A poesia é linguagem em sua função estética. Deste modo, o objeto do estudo literário não é a literatura, mas a literariedade, isto é, aquilo que torna determinada obra uma obra literária. E no entanto, até hoje, os historiadores da literatura, o mais das vezes, assemelhavam-se à polícia que, desejando prender determinada pessoa, tivesse apanhado, por via das dúvidas, tudo e todos que estivessem num apartamento, e também os que passassem casualmente na rua naquele instante. Tudo servia para os historiadores da literatura: os costumes, a psicologia, a política, a filosofia. Em lugar de um estudo da literatura, criava-se um conglomerado de disciplinas mal-acabadas. Parecia-se esquecer que estes elementos pertencem às ciências correspondentes: História da Filosofia, História da Cultura, Psicologia, etc., e que estas últimas podiam, naturalmente, utilizar também os monumentos literários como documentos defeituosos e de segunda ordem. Se o estudo da literatura quer tornar-se uma ciência, ele deve reconhecer o ‘processo’ como seu único ‘herói’. (JAKOBSON, 1921, p. 11 apud SCHNAIDERMAN, 1973d, p. IX-X).

Acerca da literariedade proposta por Jakobson, Eikhenbaum (1973b, p. 8) tece algumas considerações: “[…] o objeto da ciência literária deve ser o estudo das particularidades específicas dos objetos literários, distinguindo-os de qualquer outra matéria, e isto independentemente do fato de que, por seus traços secundários, esta matéria pode dar pretexto e direito de utilizá-la em outras ciências como objeto auxiliar.”

Principais características da literariedade, de acordo com os formalistas:

A linguagem literária produz; a não-literária reproduz;

A mensagem literária é autocentrada;

- Apresenta seus próprios meios de expressão, ainda que se valendo da língua;

- As manifestações literárias podem envolver adesão, transformação ou ruptura em relação à tradição linguística, à tradição retórico-estilística, à tradição técnico-literária ou à tradição temático-literária;

- Aspectos acústico, articulatório e semântico;

- Cria novas relações entre as palavras, estabelece associações inesperadas e estranhas;

- Cria significantes e funda significados;

- Formas linguísticas com valor autônomo;

- Linguagem conotativa;

- Metáfora e metonímia;

- Não existe uma gramática normativa para o texto literário, seu único espaço de criação é o da liberdade;

- Objeto linguístico e estético ao mesmo tempo;

- Paralelismos;

- Plurissignificação ou polissemia;

- Predomínio da função poética;

- Sonoridades, ritmos, narratividade, descrição, personagens, símbolos, ambiguidades e alegorias, mitos;

- Universalidade.

Viktor Chklovski (1973a) diz que a língua poética difere da língua prosaica pelo caráter perceptível de sua construção. Jakobson (1973c) afirma que, se a intenção da comunicação detém um objetivo puramente prático, ela faz uso do sistema da língua quotidiana (do pensamento verbal), na qual as formas linguísticas (os sons, os elementos morfológicos etc.) não têm valor autônomo e não são mais que um meio de comunicação.

Narratologia

Vladimir Propp foi um dos fundadores da Teoria da Narrativa, ou Narratologia, ao analisar os componentes básicos do enredo dos contos populares russos visando identificar os seus elementos narrativos mais simples e indivisíveis. Seus estudos são um ótimo exemplo de análise probabilística aplicada à literatura, configurando o caráter puramente científico que os formalistas pretendiam atribuir aos seus estudos. Propp encarava os contos como algoritmos combinatórios, em que os nomes e os atributos dos personagens constituem valores permutatórios, enquanto as suas ações ou funções permanecem constantes, ou seja, nos tais contos, as mesmas histórias eram repetidas, alterando-se apenas os personagens.

Vladimir Propp
Em 1928, Propp publicou o livro Morphology of the Folktale (A Morfologia dos Conto Maravilhoso, 2006), no qual estabelecia os elementos narrativos básicos que ele havia identificado nos contos folclóricos russos. Basicamente, Propp identificou sete classes de personagens/agentes (1ª: o antagonista – que cria problemas e conflito com o herói, 2ª: o doador – que entrega um objeto mágico ao herói, 3ª: o auxiliar – que auxilia o herói em sua jornada, 4ª: a princesa e o pai – este não necessariamente é o rei, 5ª: o mandante – que envia o herói a algum lugar, 6ª: o herói – o protagonista, 7ª: o falso herói – um impostor que tenta assumir o crédito pelas ações do herói ou se casar com a princesa), que vivem 31 funções narrativas das situações dramáticas – a linha narrativa que ele traça é fundamentalmente uma só para todos os contos, ainda que flexível:

1.       Um dos membros da família sai de casa (afastamento)

2.       Impõe-se ao herói uma proibição (proibição)

3.       A proibição é transgredida (transgressão)

4.       O antagonista procura obter uma informação (interrogatório)

5.       O antagonista recebe informações sobre sua vítima (informação)

6.       O antagonista tenta ludibriar sua vítima para apoderar-se dela ou de seus bens (ardil)

7.       A vítima se deixa enganar, ajudando assim, involuntariamente, seu inimigo (cumplicidade)

8.       O antagonista causa dano ou prejuízo a um dos membros da família (dano)

9.       É divulgada a notícia do dano ou da carência, faz-se um pedido ao herói ou lhe é dada uma ordem, mandam-no embora ou deixam-no ir (mediação/conexão)

10.   O herói-buscador aceita ou decide reagir (reação)

11.   O herói deixa a casa (partida)

12.   O herói é submetido a uma prova que o prepara para receber um meio ou um auxiliar mágico (doador)

13.   O herói reage diante das ações do futuro doador (reação)

14.   O meio mágico passa às mãos do herói (meio mágico)

15.   O herói é transportado, levado ou conduzido ao lugar onde se encontra o objeto que procura (deslocamento)

16.   O herói e seu antagonista se defrontam em combate direto (combate)

17.   O herói é marcado (marca)

18.   O antagonista é vencido (vitória)

19.   O dano inicial ou a carência são reparados (reparação)

20.   O regresso do herói (regresso)

21.   O herói sofre perseguição (perseguição)

22.   O herói é salvo da perseguição (salvamento)

23.   O herói chega incógnito à sua casa ou a outro país (chegada)

24.   Um falso herói apresenta pretensões infundadas (pretensões)

25.   É proposta ao herói uma tarefa difícil (tarefa)

26.   A tarefa é realizada (realização)

27.   O herói é reconhecido (reconhecimento)

28.   O falso herói ou antagonista é desmascarado (desmascaramento)

29.   O herói recebe nova aparência (transfiguração)

30.   O inimigo é castigado (castigo)

31.   O herói se casa e sobe ao trono (casamento)


Legado

Além dos já citados autores que se debruçaram sobre os estudos da Teoria da Narrativa, o Formalismo Russo influenciou muito estudiosos e deixou um enorme legado aos estudos literários e linguísticos. Entre seus sucessores, está a Escola de Praga, ou Círculo Linguístico de Praga, fundado em 1926 por Roman Jakobson, que se mudou para a Tchecoslováquia após a dissolução do Círculo de Moscou, que foi acusado de burguês e reacionário pelo novo regime comunista. O grupo adotava uma perspectiva semiótica geral para o estudo científico da literatura, e em outro campo, a fonologia viria a se tornar sua base paradigmática em um diferente número de formas.

Também fortemente influenciado pelo Formalismo Russo, o Estruturalismo, surgido na França, alcançou grande repercussão no fim da década de 1960 graças aos escritos de Roland Barthes. A crítica estruturalista se distinguia por analisar as obras literárias com base na Semiótica, ou ciência dos signos.

Os conceitos de Mikhail Bakhtin a respeito de dialogismo, polifonia (linguística), heteroglossia e carnavalesco, bem como os conceitos de análise estrutural da linguagem, poesia e arte realizados por Roman Jakobson, foram de extrema importância para os estudos modernos nos campos da Linguística e da Teoria da Literatura, influenciando um grande número de autores.

Mikhail Bakhtin

 

Referências:

CHKLOVSKI, Viktor. A arte como procedimento. In: TOLEDO, Dionísio de Oliveira (Org.). Teoria da literatura: formalistas russos. 1. ed. reimp. Trad. Ana Maria Ribeiro Filipouski, Maria Aparecida Pereira, Regina L. Zilberman e Antônio Carlos Hohlfeldt. Porto Alegre: Editora Globo, 1973a, p. 39-56.

EIKHENBAUM, Boris. A teoria do “método formal”. In: TOLEDO, Dionísio de Oliveira (Org.). Teoria da literatura: formalistas russos. 1. ed. reimp. Trad. Ana Maria Ribeiro Filipouski, Maria Aparecida Pereira, Regina L. Zilberman e Antônio Carlos Hohlfeldt. Porto Alegre: Editora Globo, 1973b, p. 3-38.

JAKOBSON, Roman. Do realismo artístico. In: TOLEDO, Dionísio de Oliveira (Org.). Teoria da literatura: formalistas russos. 1. ed. reimp. Trad. Ana Maria Ribeiro Filipouski, Maria Aparecida Pereira, Regina L. Zilberman e Antônio Carlos Hohlfeldt. Porto Alegre: Editora Globo, 1973c, p. 119-127.

PROPP, Vladimir I. Morfologia do conto maravilhoso. 2. ed. Trad. Jasna Paravich Sarhan. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.

SCHNAIDERMAN, Boris. Prefácio. In: TOLEDO, Dionísio de Oliveira (Org.). Teoria da literatura: formalistas russos. 1. ed. reimp. Trad. Ana Maria Ribeiro Filipouski, Maria Aparecida Pereira, Regina L. Zilberman e Antônio Carlos Hohlfeldt. Porto Alegre: Editora Globo, 1973d, p. IX-XXII.

  

Como referenciar este artigo:
PASSOS, Leonardo Porto. O Formalismo Russo e suas contribuições para os estudos da narrativa - parte 2. Blog C4, Campinas: Nics; Unicamp, 23 dez. 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em: <http://unicampc4.blogspot.com/2022/11/formalismo-russo-2.html>.