Análise espectromorfológica da paisagem sonora do videogame LIMBO - parte 2

Vinicius Yglesias

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Na primeira parte, falamos sobre os “tipos espectrais” propostos por Smalley (1986). Nessa segunda parte, tratarei da terminologia para a morfologia desses tipos e algumas combinações possíveis para a criação de movimento ao longo de um período de tempo.

Em relação à morfologia, Smalley (1986) apresenta novamente uma perspectiva de continuum, porém desta vez relacionada ao comportamento espectral ao longo do tempo. Dessa vez o continuum vai de “ataque-impulsos” (attack-impulses) a “estado de eflúvio” (effluvial state) (SMALLEY; GRAS; ARAGÃO, 2021).

Segundo Smalley, no ataque-impulso, o espectro escutado termina no mesmo momento em que é escutado, sem qualquer percepção de sustentação. Dessa forma, o próprio ataque é também seu final.

Entre ataque-impulso e o estado de eflúvio, encontram-se a iteração e o grão. Nessas morfologias, como pode ser observado na figura acima, os ataques-impulsos tornam-se cada vez mais frequentes, tornando-se perceptualmente um “objeto sonoro” (SCHAEFFER, 2017, p. 213) individual ao invés de diversos objetos sonoros separados entre si, conforme aproximam-se do estado de eflúvio.

Essa percepção pode ser relacionada ao que é chamado de “chunk”, termo utilizado originalmente por Miller (1956). De acordo com Snyder (2000, p. 257), chunks sãoum agrupamento pequeno de 5 a 9 elementos que, ao serem frequentemente associados uns com os outros, formam unidades maiores, as quais tornam-se, por si só, um elemento na memória1. Esse agrupamento em chunks permite um uso mais eficiente da nossa memória de curto prazo. Um número de celular, por exemplo, a princípio são apenas nove números aleatórios; entretanto, ao organizá-los em chunks, é possível retermos na memória diversos números diferentes que, isoladamente, dificilmente seriam lembrados. Da mesma maneira, a iteração e o grão podem ser pensados como agrupamentos (ou chunks) de diversos ataques-impulso que são ouvidos como um único objeto sonoro.

Por fim, no estado de eflúvio, os ataques-impulsos tornam-se tão comprimidos que passam a ser percebidos como uma nota longa, momento em que inicia esse estado.


Continuum ataque-eflúvio (attack-effluvium continuum). Fonte: Smalley, Gras e Aragão (2021).


Essas três morfologias são trazidas por Smalley como elementos fundamentais para a construção de morfologias mais complexas, com variações mais sutis que podem ocorrer ao longo do período em que um tipo espectral é sustentado. Como já mencionado por Smalley, mesmo em um objeto sonoro aparentemente único, como os pratos de uma orquestra, pode ser possível identificar interações e combinações morfológicas diversas no interior desse som, dos quais o autor traz diversos exemplos que podem ser encontrados na referência acima mencionada.

Como a contraparte ou complemento do pitch-effluvium continuum, o autor apresenta o continuum morfológico explicitado anteriormente como attack-effluvium continuum, ou “continuum ataque-eflúvio” (SMALLEY, GRAS; ARAGÃO, 2021). Nesse continuum, a morfologia de um tipo espectral pode ser perceptualmente transformada; por exemplo, ataques-impulsos separados, ao serem tocados mais rapidamente, podem ser percebidos de maneiras diferentes, como iteração, grão, ou estado de eflúvio.

A combinação das tipologias espectrais com as morfologias expostas vai gerar o que Smalley chama de movimento dos eventos sonoros ouvidos ao longo de um período de tempo, os quais descreverei brevemente a terminologia proposta por Smalley para a descrição desses movimentos.

Em seu artigo, Smalley apresenta cinco categorias básicas de movimento possíveis da altura de um som, as quais chama de “unidirecional”, “bi-direcional”, “recíproca”, “cêntrica/cíclica” e “excêntrica/multidirecional”. Cada uma destas cinco categorias possui diversas ramificações, as quais serão apresentadas brevemente e podem ser aprofundadas no texto original do autor. Por ora, uma descrição geral de cada uma delas é o suficiente para o escopo deste artigo.

A categoria unidirecional é a mais básica, referindo-se apenas ao movimento de um único objeto sonoro. Esse movimento pode ser ascendente, descendente ou plano, mantendo-se na mesma frequência. Na interação entre dois tipos espectrais ao longo do tempo encontra-se o movimento bi-direcional, no qual podemos ter movimentos convergentes ou divergentes.

Movimentos recíprocos podem ser em formato de parábola ou parábola invertida. Essa característica torna mais difusa a separação entre a categoria unidirecional e a recíproca, visto que um movimento unidirecional a qualquer movimento pode se transformar em um movimento de parábola, por exemplo. Além disso, também podem ser tidos como oscilações, ondulações, ou convoluções.

A categoria cêntrica, ou cíclica, parte de uma analogia visual que implica em um objeto sonoro que parte de um centro e se espalha, ou de um som que converge para um ponto central. Embora uma arte do tempo, técnicas para alusão a esse fenômeno contam com a memória de curta duração, a qual, de acordo com Smalley, permite que a repetição de um movimento seja interpretada como centricidade. As possibilidades desse tipo de movimento aventadas por Smalley são: centrifugação, centripetação, peritrencidade, vórtice e hélice.

Por fim, temos os movimentos excêntricos, ou multidirecionais, que de acordo com o autor, parecem apresentar ausência de um foco central. As ramificações elencadas são apresentadas em pares, e incluem acumulação-dissipação, exogenia-endogenia, confração-difração, e conglomeração, a única apresentada separadamente.


Quadro das tipologias de movimento (motion typology) descritas por Smalley. Fonte: Smalley, Gras e Aragão (2021)



Nas duas partes desse artigo, pudemos observar como a teoria musical tradicional pode se tornar insuficiente para análise de música eletroacústica, motivo pelo qual a proposta de Smalley se mostra relevante para obras desse estilo, e também para paisagens sonoras, por conta destas também contarem com características sonoras mais complexas do que é possível grafar com a notação tradicional. A partir da teoria apresentada, veremos, na terceira e última parte, uma aplicação prática na paisagem sonora do game LIMBO.


Notas

1 small groups of elements (5-9) that, by being frequently associated with each other, form higher-level units, which themselves become elements in memory (SNYDER, 2000, p. 257).


Referências

MILLER, George A. The magical number seven, plus or minus two: some limits  on our capacity for processing information. The Psychological Review, v. 63, no. 2, p. 81-97, 1956.

SMALLEY, Denis. Spectro-morphology and Structuring Processes. In: EMMERSON, Simon (ed.). The Language of Electroacoustic Music. The Macmillan Press Ltd, 1986.

SMALLEY, Denis. Espectromorfologia e Processos de Estruturação. Tradução de: GRAS, Germán E.; ARAGÃO, Thaís A. Espectromorfologia e Processos de Estruturação. Revista Vórtex, Curitiba, v.9, n.1, p. 1-38, 2021.

SNYDER, B. Music and memory: An introduction. Cambridge: MIT Press, 2000.


Como referenciar este artigo:

YGLESIAS, Vinicius. Análise espectromorfológica da paisagem sonora do videogame LIMBO - parte 2. Blog C4, Campinas: Nics; Unicamp, 06 dez. 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em: https://unicampc4.blogspot.com/2022/12/analise-espectromorfologica-da-paisagem.html