A psicologia da oralidade nos videogames da franquia NieR – parte 1 – Arquétipo Vocal

Vinicius Yglesias

viniciusyglesias.musico@gmail.com

http://lattes.cnpq.br/7940545685810813


No meu artigo de hoje aqui do Blog C4, dividido em duas partes, falarei sobre aspectos cognitivos relacionados ao uso da voz no videogame NieR:Automata. Esta primeira parte abordará, a partir dos conceitos de arquétipo de Carl Jung (ADLER; HULL,  1980) e Persona Vocal de Philip Tagg (TAGG, 2002; 2012), conceitos a partir do qual emerge a noção do que chamarei de “Arquétipo vocal” em uma trilha musical do game, enquanto a segunda parte tratará do uso da glossolalia de Freire (2007) a partir da epistemologia da mediação de Sterne (2003).

O conceito de “arquétipo” foi cunhado por Carl Jung (ADLER; HULL, 1980), e está diretamente relacionado ao “inconsciente coletivo”, expressão também cunhada pelo autor. De acordo com Al-Jaf (2019), o inconsciente coletivo trata-se de uma espécie de psyché universal, na qual, conforme Mota (2018), os arquétipos se sedimentam por meio de diversas repetições de experiências vividas pela humanidade ao longo de sua formação. De acordo com Mota (Ibid.), os arquétipos mais comuns identificados por Jung são o da Grande Mãe, Pai, Persona, Sombra, Anima, Animus, Herói e Self.

Na teoria Jungiana, cada um desses arquétipos (e outros mencionados pelo autor, como o arquétipo da Criança) é associado a “imagens primordiais” (GRIMBERG, 1994), entretanto, o estudo de caso que trago refere-se ao que Mota (2018) chama de “arquétipo sonoro”, referindo-se ao papel da voz na evocação desses arquétipos no contexto das artes da cena.

Podemos ainda relacionar a expressão “arquétipo sonoro” de Mota (2018) ao que Philip Tagg (2002; 2012) chama de “persona vocal”. A descrição de Tagg da expressão refere-se a características tímbricas presentes na voz humana que, semelhante ao conceito de arquétipo de Jung, evocam imagens mentais específicas, não só físicas como emocionais. Alguns exemplos citados por Tagg são a “Pequena Garota” (little girl), ou o garoto gentil (Nice Boy). Nesse sentido, podemos pensar na “persona vocal” como ramificações mais específicas dos arquétipos universais de Jung, que dependem das especificidades tímbricas da voz escutada, ou de maneira mais abrangente, a partir da união de ambos os conceitos, podemos considerar a noção de “arquétipo vocal”, termo que será utilizado nesse artigo.

Como apontado por Purves (2016) e Grosbras e Belin (2020), a capacidade de extrair características físicas e emocionais da voz pode ter origem na evolução biológica da espécie humana, quando em um contexto de sobrevivência seria necessário reconhecimento rápido de potenciais perigos. Outros exemplos de Tagg (2002), como “Rebelde Desesperado” (Desperate Rebel) ou “Amiga” (Female Friend), apontam, de maneira indireta, como essa necessidade evolutiva de reconhecimento de arquétipos sonoros vocais se mostra presente ainda nos dias de hoje.

O estudo de caso que apresento a seguir mostra uma utilização prática do arquétipo vocal de Criança, novamente a partir do videogame NieR:Automata, lançado em 2017 pela desenvolvedora PlatinumGames2. No enredo do game, controlamos 2B, uma androide criada pelos humanos que tem como objetivo eliminar robôs criados por aliens que invadiram o planeta terra e expulsaram a espécie humana de seu planeta natal.


Cena do game NieR:Automata, na qual a protagonista 2B enfrenta um dos primeiros robôs a aparecer no game.3


No enredo do game, os androides, ainda que também sendo criações artificiais, são apresentados como seres auto-conscientes, possuidores de emoções e sentimentos humanos, enquanto os robôs são inicialmente apresentados como máquinas de matar, sem emoções. Essa percepção dos robôs começa a mudar quando chegamos à vila de Pascal, um dos robôs do game, que nos convida para o vilarejo.

O game cria um clima de tensão e desconfiança antes de nossa chegada no vilarejo, mas que rapidamente se transforma em uma espécie de alívio quando, ao entrar no local, escutamos as vozes de crianças na trilha musical do game. O clima de paz é reforçado pelas bandeiras brancas sendo hasteadas pelos habitantes da vila.



De acordo com Adler e Hull (1980, p. 172), uma das características do arquétipo da Criança é a representação do começo e do fim de um evento ao mesmo tempo, fenômenos que Jung associa à pré e pós-consciência humana, sendo a pré-consciência os primeiros momentos de vida e a pós-consciência a antecipação da vida após a morte (Ibid.).

Essa relação entre o pré-consciente e o pós-consciente no momento de origem do arquétipo da criança em NieR:Automata pode ser relacionada a uma reavaliação das atitudes do próprio jogador durante o game. Isso porque essa parte do enredo acontece apenas cerca de 2 horas depois de seu início. Logo, por conta do tempo já despendido no game e pelos robôs, até esse momento, serem considerados apenas máquinas programadas para matar, o jogador era incentivado a enfrentar todas as máquinas que encontrasse antes de chegar à vila de Pascal.

Entretanto, a partir da chegada na vila e da apresentação do arquétipo vocal infantil, esse momento pode levar o jogador, acessando a pré-consciência, a sentir certo remorso por possivelmente ter enfrentado outras máquinas que também fossem inocentes anteriormente, assim como no pós-consciente se antecipar a como agir com outras máquinas que encontrará ao longo do game.

Assim, notamos que a noção do arquétipo de criança, representado pelas características tímbricas de sua voz, se mostra como um elemento relevante na ambientação do jogador a esse momento do game, levando o jogador a reavaliar as atitudes que teve até aquele momento, o incentivando a no mínimo considerar uma mudança de percepção em relação aos robôs ao longo do restante do game. No próximo artigo, continuarei essa temática e trarei mais algumas questões interessantes acerca do uso da voz nos games.


Referências

ADLER, G.; HULL, R. F. C. (ed.). The Collected Works of C. G. Jung | Complete Digital Edition. Volume 9, Part I: Archetypes and the Collective Unconscious. Tradução de R. F. C. Hull. Bollingen Series XX. Princeton University Press, 1980.

AL-JAF, Ali Ismael. Significance Archetypes in Literature with Reference to Literary Criticism. Iraqi Academic Scientific Journals, 2019.

GROSBRAS, Marie-Hélène. BELIN, Pascal. Development of Voice Perception in the Human Brain. Jean Decety. The Social Brain: A Developmental Perspective, 2020. hal-03084465.

MOTA, Juliana. Voz e presença: a utilização dos arquétipos sonoros no trabalho do autor. Ephemera, no. 1, p. 31-40, 2018.

PURVES, Dale. Music as Biology: Why we Like to Hear and Why. Duke University. Coursera, 2016.

TAGG, Philip. Text and Context as Corequisites in the Popular Analysis of Music. Conference of Musical Text and Context, Cremona, 2002.

TAGG, Philip. Music’s Meanings: a modern musicology for non-musos. New York & Huddersfield: The Mass Media Music Scholars’ Press, 2012. e‐book version 2.4.2, 2013‐05‐14, 710 pages, ISBN 978‐0‐9701684‐5‐0 as first hard‐copy edition, 2013‐03‐06, 710 pages, ISBN 978‐0‐9701684‐8‐1. First published (version 1.0) as e‐book, 2012.


Como referenciar este artigo:

YGLESIAS, Vinicius. A psicologia da oralidade no videogame NieR:Automata – parte 1 – Arquétipo Vocal. Blog C4, Campinas: Nics; Unicamp, 21 mar. 2023. ISSN: 2764-5754. Disponível em: https://unicampc4.blogspot.com/2023/03/a-psicologia-da-oralidade-no-videogame.html.