Soundscape ou Paisagem Sonora: diferenças linguísticas no uso do termo

Vinicius Yglesias

viniciusyglesias.musico@gmail.com

http://lattes.cnpq.br/7940545685810813


Desde a graduação, questões relacionadas à tradução de conceitos de outros idiomas (principalmente inglês, o qual tenho maior fluência) para o português me chamavam a atenção. Ainda em meu TCC, escrevi brevemente sobre essa questão relacionada à prática de “percussão corporal”, popularizada no Brasil pelos Barbatuques, a qual, apenas após alguns dias de pesquisa descobri que a prática referia-se ao que é internacionalmente chamado de Body Music (música corporal, ou música do corpo), termo utilizado por Keith Terry (1984), seu idealizador, para falar da prática. Já o equivalente literal de “percussão corporal”, Body Percussion, parecia ser utilizado na literatura apenas pelo pesquisador Francisco Javier Romero-Naranjo e outros relacionados a ele, porém, em estudos mais voltados para a área cognitiva (ROMERO-NARANJO, 2015; ROMERO-NARANJO, 2014; ROMERO-NARANJO, 2013; ROMERO-NARANJO, 2022), sem relação direta aparente com a prática artística trazida ao Brasil pelos Barbatuques, ainda que Romero-Naranjo cite grupos que realizam a prática.



Com o aprofundamento no estudo de paisagens sonoras após o início de meu Mestrado, essa questão voltou a tomar minha atenção, dessa vez com o termo “paisagem sonora”, visto que intuitivamente, me parecia que havia ligeiras diferenças entre o uso do termo “soundscape”, em inglês, (SCHAFER, 1977) e o uso de “paisagem sonora”, em português (SCHAFER, 2011), que trata-se de sua tradução mais comum.

Por isso, com o objetivo de investigar suas possíveis distinções, busquei no Google Scholar por artigos a partir de 2018 que contivessem em seu título os termos “soundscape”, em inglês, e “paisagem sonora” em português. Selecionei aproximadamente os 25 primeiros resultados de cada idioma, e após exclusão de alguns estudos por impossibilidade de acesso ao texto completo, restaram 20 pesquisas de cada idioma. A princípio, busquei quantos desses textos citavam Murray Schafer, o disseminador do termo em inglês, em suas referências bibliográficas.

O resultado da busca mostrou que nos textos em português a grande maioria (17 dos 20 textos, ou 85%), cita o autor Murray Schafer como uma das referências, mesmo que brevemente apenas como o disseminador do termo. Em contrapartida, nos textos em inglês, ocorreu exatamente o oposto, pois apenas 3 dos 20 textos (15%) citam Schafer em suas referências. Os outros 17 textos sequer mencionam seu nome ou de qualquer outro membro do World Soundscape Project, ainda que este tenha sido um dos maiores disseminadores do conceito.

Levando em conta que o autor viveu até Agosto de 2021, sua ausência na maioria desses textos, alguns de revistas conceituadas internacionalmente, como a Science (DUARTE et al. 2021; DERRYBERRY et al. 2020), não deixa de chamar a atenção, pois parece indicar que em algum momento o termo “soundscape” se desvencilhou quase que exclusivamente de seu maior disseminador. Por outro lado, na língua portuguesa, os resultados apontam que ainda há uma correlação quase imediata entre Schafer e o termo “paisagem sonora”.

Outro resultado marcante foi a diferença de temas e áreas de conhecimento abordadas nos textos de ambos os idiomas. Em inglês, nenhum dos textos selecionados era da área da música ou correlata, mas eram relacionados principalmente a urbanismo (MA; MAK; WONG, 2021; LI; LAU, 2020; CHEN et al. 2022), ecologia acústica (HONG et al., 2021; CHEN et al., 2022; DUARTE et al., 2021) e temas relacionados.

Já em português, a presença de pesquisa sobre o tema na área da música é mais constante, observando-se trabalhos na área da composição (NEUMANN; NEUMANN, 2019; LUNA, 2021), análise musical (ALIEL, 2019), educação musical (PÉDICO; MACHADO; SOUZA, 2020) e acessibilidade (ZANELLA; MATTOS; ASSIS, 2019). Além disso, os temas são mais variados, envolvendo também trabalhos na área de urbanismo (SOARES, 2019), ecologia acústica (LOPES, 2018; SILVA; SILVA; DE BRITO, 2019) e até mesmo literatura (WERLANG; DEBORTOLLI, 2021). Inclusive, dois dos três textos que não citam o autor (LOPES, 2018; SILVA; SILVA; DE BRITO, 2019) tratam de temas mais próximos da ecologia acústica, enquanto o terceiro (HENRIQUES, 2019) trata da paisagem sonora de Évora, em Portugal, durante o século XVII.

Embora seja um estudo inicial e ainda pouco criterioso, já é possível observar, ao menos superficialmente, como o termo parece ter passado por ramificações bem diferentes em ambos os idiomas. A presença de estudos de planejamento urbano e ecologia acústica tanto em inglês quanto em português indica que Schafer obteve certo sucesso em um de seus objetivos ao disseminar o termo, o de alertar a população sobre os perigos do aumento da poluição sonora.

É possível traçar um paralelo desses usos díspares do conceito com o chamado hard problem of consciousness (CHALMERS, 2017). Esse hard problem trata de como informações quantitativas interpretadas pelo nosso cérebro, como as propriedades acústicas de uma paisagem sonora, pesquisadas por Wilford et al. (2021) e outros autores já citados, podem ser transformadas em sensações qualitativas cognitivas e emocionais que são utilizadas para a educação musical de crianças, como em Pédico, Machado e Souza (2020), questão que pode ser um dos fatores dessa diferença do uso do conceito entre os idiomas, em inglês de maneira quantitativa e em português mais frequentemente de maneira qualitativa.

Entretanto, para além desse hard problem, a falta de referências tão discrepante ao autor na área de urbanismo e ecologia acústica em contraposição à relevância que o termo cunhado por ele demonstra ter nessa mesma área parece indicar que em algum momento da “linhagem evolutiva” do conceito de paisagem sonora, ele pode ter sido disseminado por outros meios em língua inglesa, adquirindo significados que o próprio Schafer, provavelmente por não ser da área (embora defendesse constantemente o estudo do tema nela), desconhecia.

Esses resultados podem indicar que o conceito de soundscape, no idioma original, parece estar mais incorporado ao idioma, podendo ser utilizado como um vocábulo comum mesmo em textos acadêmicos, sem necessidade de referência a Schafer por já ter se tornado parte integrante do idioma, enquanto em português o conceito parece estar ainda intrinsecamente conectado a Schafer, sendo quase impossível desvinculá-lo do mesmo em publicações acadêmicas. Talvez futuros estudos focados nessa questão contribuam para encontrar o “elo perdido” do conceito em ambos os idiomas.


Referências

ALIEL, Luzilei. Análise Espectromorfológica da Paisagem Sonora em Five Places to Remember de Fernando Iazzetta. Musica Theorica – Revista da Associação Brasileira de Teoria e Análise Musical, v. 4, no. 2, pp. 182-207, 2019.

CHALMERS, D. The Hard Problem of Consciousness. In: SCHNEIDER, Susan; VELMANS, Max. (Org.). The Blackwell Companion to Consciousness. John William and sons Ltd., 2017. 

CHEN, Zu et al. How to integrate the soundscape resource into landscape planning? A perspective from ecosystem services. Ecological Indicators, v. 141, 2022.

DERRYBERRY et al. Singing in a silent spring: Birds respond to a half-century soundscape reversion during the COVID-19 shutdown. Science, v. 370, no. 6516, pp. 575-579, 2020.

DUARTE, Carlos M. et al. The soundscape of the Anthroposcene ocean. Science, v. 371, no. 6529, 2021.

HENRIQUES, Luis. A atividade litúrgico-musical no convento de Nossa Senhora dos Remédios de Évora: o seu papel na paisagem sonora da cidade durante o século XVII. Herança – Revista de História, Patrimônio e Cultura, v. 1, no. 1, pp. 73-92.

HONG, Xin-Chen. Modeling the impact of soundscape drivers on perceived birdsongs in urban florests. Journal of Cleaner Production, v. 2021.

LI, Heng; LAU, Siu-Kit. A review of audio-visual interaction on soundscape assessment in urban environments. Applied acoustics, v. 166, 2020.

MA, Kuen Wai; MAK, Cheuk Ming; WONG, Hai Ming. Effects of environmental sound quality on soundscape preference in a public urban space. Applied Acoustics, v. 171, 2021.

LOPES, Lara Cunha. INTERPRETANDO A CONTRIBUIÇÃO DA ANTROPOFONIA SOBRE MÉTRICAS ACÚSTICAS EM UMA PAISAGEM SONORA MARINHA. Dissertação (Trabalho de Conclusão de Curso) - Curso de Ciências Biológicas, Centro de Biociências, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Natal, 2018.

LUNA, Ianni Barros. Em colaboração com a natureza: composições em paisagem sonora e outras experimentações contemporâneas. Panoramas 2021. VIII Simposio internacional de innovación em medios interactivos, 2021.

NEUMANN, Helena Rodi; NEUMANN, Odirlei. Mudanças Históricas nos Ruídos da Cidade: A Paisagem Sonora Urbana como uma Composição Musical. Fórum Ambiental da Alta Paulista, v. 15, no. 1, 2019.

PÉDICO, André Leme; MACHADO, Fabiana de Sousa Cunha; SOUZA, Leandro Pereira de. As Oficinas "Paisagem Sonora - Sons e Silêncios da Quarentena": relato de experiência realizada na Mostra Virtual de Artes do CEFET-MG. Rebento, São Paulo, no. 13, pp. 304-324, 2020.

ROMERO-NARANJO, Francisco Javier. Science & art of body percussion: a review. Department of Innovation and Didactic Training, University of Alicante. Spain, 2013.

______. Body Percussion and Memory for Elderly People Through the BAPNE Method. Procedia - Social and Behavioral Sciences, v. 132, pp. 533-537, 2014.

______. Fundamentos de la percusión corporal como recurso para la estimulación cognitiva, atención y memoria - Método BAPNE. Investigación y Propuestas Innovadoras de Redes UA para la Mejora Docente [Recurso electrónico] / Universidad de Alicante, Vicerrectorado de Estudios, Formación y Calidad, Instituto de Ciencias de la Educación (ICE), 2015. ISBN 978-84-617-3914-1, pp. 2149-2163. URI: http://hdl.handle.net/10045/50628. ISBN: 978-84-617-3914-1

______. BAPNE FIT: Neuromotricity and Body Percussion in Physical Activity and Sport Sciences. The Educational Review, USA. 2022, 6(2): 37-44. https://doi.org/10.26855/er.2022.02.001.

SCHAFER, R. Murray. (1977). The soundscape: our sonic environment and the tuning of the world. Destiny Books. Rochester, Vermont.

______. (2011). A afinação do mundo: uma exploração pioneira pela história passada e pelo atual estado do mais negligenciado aspecto do nosso ambiente: a paisagem sonora / R. Murray Schafer; tradução Marisa Trench Fonterrada. – 2.ed. – São Paulo: Editora Unesp. 382p.: il

SILVA, João P. Reis; SILVA, Rafael F. Guatura da. Paisagem Sonora: Análise da Paisagem Sonora do Aeródromo do Comando de Aviação do Exército Brasileiro. 2º Simpósio de Acústica e Vibrações. Coimbra, Portugal, 2019.

SOARES, Antonio Carlos Lobo. PAISAGEM SONORA DE PARQUES URBANOS. Paisagens Híbridas, v. 1, no. 2, pp. 74-97, 2018.

TERRY, Keith. Body Music. Crosspulse, 1984.

WILFORD, Dylan Charles et al. Quantitative Soundscape Analysis to Understand Multidimensional Features. Frontiers in Marine Science, 2021. In: Dziak, B., Copeland, A., Širovic, A., Bohnenstiehl, D. R., Van Opzeeland, I. C. Innovation and Discoveries in Marine Soundscape Research. Lausanne: Frontiers Media SA, 2022.

ZANELLA, Andrea Vieira; MATTOS, Laura Kemp; ASSIS, Neiva de. CRIANÇAS CEGAS E SEUS ENCONTROS COM A CIDADE: PAISAGEM SONORA E EDUCAÇÃO MUSICAL EM FOCO. Cad. Cedes, Campinas, v. 39, no. 107, pp. 87-98, 2019.


Como referenciar este artigo:

YGLESIAS, Vinicius. Soundscape ou Paisagem Sonora: diferenças linguísticas no uso do termo. Blog C4, Campinas: Nics; Unicamp, 07 mar. 2023. ISSN: 2764-5754. Disponível em: <https://unicampc4.blogspot.com/2023/03/soundscape-ou-paisagem-sonora.html>.