A psicologia da oralidade nos videogames da franquia NieR – parte 2 – Glossolalia e a Epistemologia da Mediação

Vinicius Yglesias

viniciusyglesias.musico@gmail.com

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O termo “glossolalia”, do grego glôssa (língua, idioma) + lália (balbucio, tagarelice, pronúncia) é comumente utilizado para tratar de momentos em ritos religiosos nos quais os praticantes subitamente começam a falar em idiomas desconhecidos ou mesmo inexistentes, supostamente relacionados a um mundo espiritual. Silvana Matias Freire (2007), pesquisadora nas áreas de Linguística e Linguística Aplicada e docente na Universidade Federal de Goiás (UFG) destaca três instâncias da glossolalia: 1 - religiosa, encontrada não só nas vertentes cristãs como em ritos indígenas e do candomblé; 2 - patológica, quando o fenômeno é observado em pacientes que sofreram danos psicológicos; 3 - lúdica, quando a glos
solalia ocorre em brincadeiras de crianças, que brincam com as sonoridades das palavras. A autora menciona ainda a glossolalia artística, que ocorre em produções artísticas como no filme “O Grande Ditador”, de Charles Chaplin, no qual o ator faz um discurso simulando estar falando em alemão, utilizando porém glossolalias em sua maior parte.

A escrita desse artigo foi motivada pela percepção de que nos games da franquia NieR1, a letra das músicas são cantadas em um idioma fictício, o que me fez buscar quais fatores podem ter levado os desenvolvedores a criarem um idioma exclusivo para as músicas do game ao invés da utilização de um instrumento musical para a melodia, questão para a qual apresento algumas possibilidades abaixo.

O motivo mais concreto para a escolha da fala no lugar de um instrumento musical seria geralmente a sua função semântica, que possibilita a comunicação de significados objetivos, classificação e descrição de ações, qualidades e ideias que instrumentos musicais não podem reproduzir. Porém, retirando-se esse elemento, como ocorre na letra da maioria das músicas da franquia de games NieR, o que mantém o interesse em ter a voz nos holofotes, ou ainda como questiona Freire (2007), “o que justifica falar para não dizer nada?”, característica da glossolalia, que trata-se de um falar sem dizer nada?


Para tratar dessa questão, comecemos por entender quais características, além da possibilidade semântica, diferenciam os sons da voz no canto de outros instrumentos. De acordo com Ladefoged e Johnson (2015),

Tornar os gestos da fala audíveis envolve empurrar ar para fora dos pulmões enquanto produz um barulho na garganta ou na boca. Esses barulhos básicos são modificados pelas ações da língua e dos lábios²


Essa descrição traz uma informação implícita, mas que considero essencial para entendermos um aspecto fundamental das diferenças entre voz e instrumentos musicais. Retomando a questão da mediação de Sterne (2003), diferente de um instrumento musical, os sons vocais partem de dentro do corpo de um indivíduo para o ambiente antes de chegar ao ouvinte. Essa diferença se mostra até mesmo óbvia quando consideramos a palavra “instrumentos”, que utilizamos ao lado de “musicais”, pois estes são literalmente isso, instrumentos, objetos artificialmente construídos que fazem a mediação entre um movimento corporal e o resultado sonoro desse movimento, moldado pelo instrumento. Embora o ar em si já seja um meio, refiro-me aqui à mediação através de algo sólido.

No contexto da escuta, o fator epistemológico da mediação identificado por Sterne parece corresponder a achados cognitivos de estudos do mesmo período, como no de Belin, Zatorre e Ahad (2001), no qual identificaram que sons vocais promoveram uma ativação neurológica muito maior em diversas regiões do córtex auditivo do que sons não-vocais, sugerindo que talvez sempre que escutamos algum som vocal, temos alguma sensação (consciente ou não) de proximidade com a fonte da voz, reconhecendo-a como outro ser humano.

É importante destacar que neste estudo os sons vocais utilizados não foram apenas sons com sentido semântico identificável aos voluntários. Entre a amostra de sons vocais, havia tanto palavras em idiomas diversos, alguns desconhecidos aos participantes, quanto vocalizações não articuladas, como sonoridades de risadas, choros e até mesmo pigarros. Partindo de fontes e características de sons vocais tão variadas, mas que geraram resultados tão similares em comparação com os sons não-vocais, acredito que o aspecto que une sonoridades tão variadas é o fato de todas elas serem produzidas de maneira imediata, ou seja, diretamente a partir do corpo, sem a mediação de qualquer instrumento musical.

Mesmo que estejamos falando da música de um game, que passa por diversas mediações da gravação até chegar ao ouvido do jogador, o próprio experimento de Belin, Zatorre e Ahad (2002) demonstra que mesmo que sejam mediados, já que os sons utilizados no experimento também eram gravações, sons vocais ainda afetam o córtex auditivo humano de maneira mais pronunciada do que sons instrumentais.

Zatorre, Belin e Penhume (2002), por exemplo, afirmam que o reconhecimento de diferentes fonemas ocorre na ordem das dezenas de milissegundos. Essa rápida velocidade nos permite rapidamente identificar características diversas de indivíduos desconhecidos, como idade, gênero, e informações emocionais e expressivas (PURVES, 2016; GROSBRAS; BELIN, 2020), portanto, a rápida identificação dessas características possui importância evolutiva no contexto de sobrevivência e manutenção da espécie.

Há ainda um estudo de Obermeier et al. (2013), em que os autores buscam identificar os efeitos estéticos e emocionais da métrica e da rima na poesia. No estudo, um resultado especialmente interessante para este artigo é o de que os versos com rimas entre palavras fictícias (pseudo-words), como strift e rift, que são palavras inexistentes no alemão, idioma utilizado no experimento, provocaram emoções mais fortes nos participantes do que versos com palavras reais, das quais eles entendiam seu significado. Como os próprios autores descrevem, esse resultado sugere que rimas provavelmente influenciam de maneira mais significativa as emoções sentidas ao escutá-las quando não há significado semântico para ser extraído delas.

Uma possível explicação para esse resultado, na minha visão, está no mecanismo da “valoração contrastiva” descrito por David Huron (2006, pp. 21-25). Esse mecanismo, conforme Huron, se trata de quando um evento surpreendente, ao ser reconhecido como inofensivo, gera sensação de agradabilidade ainda mais acentuada do que um evento já esperado. No caso do estudo de Obermeier et al. (2013), é possível que o reconhecimento de uma rima, ou seja, de algum elemento comum entre as frases, mesmo elas sendo frases fictícias, ative o mecanismo da valoração contrastiva, gerando maior sensação de impacto emocional do que frases com conteúdo semântico reconhecível.

A relação dessas questões com a escolha de uma melodia vocal que produz apenas glossolalias para os games da franquia NieR pode estar (inconscientemente) relacionada à intenção dos desenvolvedores de aprofundar a conexão do jogador com o game, pois se por um lado a interpretação fonética ocorre mais rapidamente, os fonemas utilizados, por ser uma melodia vocal, mudam constantemente, mas sem a associação linguística a qualquer idioma específico. Dessa maneira, praticamente a cada nota, a interpretação musical, aliada com a interpretação fonética, se torna um novo elemento a ser cognitivamente interpretado que, aliado à valoração contrastiva evocada pelas rimas, pode ter um papel fundamental em manter o jogador imerso no mundo virtual do game.


Notas

¹ Disponível em: <https://store.steampowered.com/app/524220/NieRAutomata/>. Acesso em: 21 jun. 2022.

² Making speech gestures audible involves pushing air out of the lungs while producing a noise in the throat or mouth. These basic noises are changed by the actions of the tongue and lips.


Referências

BELIN, Pascal; ZATORRE, Robert J; AHAD, Pierre. Human temporal-lobe response to vocal sounds. Cognitive Brain Research, Montreal, v. 13, p. 17-26, 2002.

FREIRE, Silvana Matias. Glossolalias: ficção, semblante, utopia. Tese de Doutorado. Curso de Linguística, Instituto de Estudos da Linguagem. Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2007.

GROSBRAS, Marie-Hélène. BELIN, Pascal. Development of Voice Perception in the Human Brain. Jean Decety. The Social Brain: A Developmental Perspective, 2020. hal-03084465f

HURON, David. Sweet anticipation: music and the psychology of expectation. Cambridge: MIT Press, 2006.

Decety. The Social Brain: A Developmental Perspective, 2020. ffhal-03084465f

LADEFOGED, Peter. JOHNSON, Keith. A Course in Phonetics. 6ª Edição. Cengage Learning, 2011.

PERROTT, D.; GJERDINGEN, R. O. Scanning the dial: An exploration of factors in the identification of musical style. Paper presented at the Society for Music Perception and Cognition Conference, Evanston, III, 1999.

PURVES, Dale. Music as Biology: Why we Like to Hear and Why. Duke University. Coursera, 2016. 

STERNE, Jonathan. The Audible Past: cultural origins of sound reproduction. Duke University Press, 2003.

ZATORRE, Robert J.; BELIN, Pascal; PENHUNE, Virginia B. Structure and function of auditory cortex: music and speech. TRENDS in Cognitive Sciences, v. 6, no. 1, 2002.


Como referenciar este artigo:

YGLESIAS, Vinicius. A psicologia da oralidade no videogame NieR:Automata - parte 2 - Glossolalia e a Epistemologia da Mediação. Blog C4, Campinas: Nics; Unicamp, 04 abr. 2023. ISSN: 2764-5754. Disponível em: https://unicampc4.blogspot.com/2023/04/a-psicologia-da-oralidade-no-videogame.html