NICS: 40 Anos de Comunicação Sonora (Parte 3) - Concerto Ensemble Eletroacústico NICS.


Leonardo Arruda

leonardoaugusto.info@gmail.com

http://lattes.cnpq.br/1593717382092364

No último dia do evento comemorativo dos 40 anos do NICS, tive a oportunidade de assistir a uma apresentação da obra completa de "O Tratado" (Treatise) de Cornelius Cardew (1936-1981), interpretada pelo grupo Ensemble Eletroacústico NICS no espaço cultural Casa do Lago[1] na Unicamp. O grupo é formado por Pq. Dr. Manuel Falleiros nos sopros e processamento digital, Prof. Dr. André Martins na guitarra, bandolim e processamento digital, e Bruno Trochmann nas cordas e instrumentos preparados[2]. Os membros do Ensemble Eletroacústico NICS são especialistas na linguagem de música aberta (ECO, 2013) e de tempo real. Neste blog, gostaria de compartilhar algumas observações que fiz durante o concerto e algumas informações sobre a obra executada.

Imagem de uma parte da obra “O Tratado” (Treatise) de Cornelius Cardew

Fonte: NICS - https://www.nics.unicamp.br/nics40anos/


O compositor Cornelius Cardew estudou violoncelo, piano e composição na Royal Academy of Music em Londres, entre os anos 1953 e 1957 (TILBURY, 1983). Cardew iniciou sua trajetória musical com o estudo da música serial pós-weberiana, porém, na década de 1960, após uma colaboração direta com Stockhausen em Colônia, ele decidiu seguir caminhos mais radicais em direção à indeterminação. Durante esse processo, Cardew percebeu inconsistências na estética serial e incompatibilidades entre a escrita e a percepção sonora resultante, em consonância com outros compositores vanguardistas. Nesse contexto, na Europa e nos Estados Unidos surgia o movimento da música indeterminada [3](ROCHA, 1991) representado, na Europa, por Karlheinz Stockhausen, Pierre Boulez, Luciano Berio, entre outros, e nos Estados Unidos, por Christian Wolff, Morton Feldman, Earle Brown e John Cage. Esses compositores tinham como característica em comum criar obras que poderiam ser executadas de maneiras diferentes (ROSSI; BARBOSA, 2017).

Além do fato de trazer a liberdade ao intérprete e ao compositor, Cardew explorou diversas formas de notação e sintaxe musical. Alguns pesquisadores musicólogos consideram que “O Tratado” seja a obra mais radical em termos de notação musical durante esse período “experimental” (ROSSI; BARBOSA, 2017). Para esta obra, Cardew se inspirou no trabalho do filósofo Ludwig Wittgenstein, mais especificamente em seu livro "Tractatus Logico-Philosophicus", que explora os limites da linguagem humana (WITTGENSTEIN, 2010). Assim como Wittgenstein, Cardew buscava explorar os limites da notação musical, utilizando alguns símbolos (67 elementos) musicais, alguns gráficos e outros símbolos não convencionais que não possuem um significado prévio (CARDEW, 2006; LEMOS, 2016).  Composto por 193 páginas, "O Tratado" exige que músicos ou grupos de músicos criem seus próprios conjuntos de significados para realizar uma performance única e interpretativa.  Durante a execução da obra, o compositor espera que o público desfrute da apresentação de maneira informal, podendo inclusive sair da sala e retornar quando desejar, experimentar diferentes ângulos de visão ou mesmo ouvir a performance com os olhos fechados, desde que mantenha o respeito pelo trabalho dos músicos (ROSSI; BARBOSA, 2017). Abaixo um vídeo de algumas páginas da obra Treatise.

Vídeo de uma parte da obra “O Tratado” (Treatise) de Cornelius Cardew 

No Espaço Cultural Casa do Lago da Unicamp, presenciei o concerto do grupo Ensemble Eletroacústico NICS interpretando a obra completa "O Tratado" de C. Cardew. Este concerto teve duração de aproximadamente 2 (duas) horas, encerrando o ciclo da comemoração dos 40 anos do NICS. Foi minha primeira experiência em um concerto eletroacústico e quando entrei na sala, a apresentação já havia começado. Na extremidade oposta da sala, estava o Dr. Manuel Falleiros com vários tipos de saxofones, incluindo um Soprano, um Alto, um Tenor e um Barítono, além de um computador com um patch desenvolvido em Pure Data para o processamento de áudio. Na outra extremidade, o Prof. Dr. André Martins tocava guitarra com um pequeno set de pedais e uma pedaleira conectada a um amplificador. Atrás dele, estava Bruno Trochmann com seu violino, uma série de acessórios em um case (do próprio violino) e um microfone em seu colo, que usava para extrair sons e timbres dos seus instrumentos. No centro da sala, uma lona branca projetava uma apresentação da obra completa de "O Tratado". Quando entrei na sala, fiquei um pouco confuso com o que estava acontecendo, já que nunca tinha assistido a um concerto desse tipo antes.

Quando me acomodei na cadeira, comecei tentar relacionar os diferentes sons e texturas que os músicos estavam criando com as imagens projetadas na lona. Como eu não conhecia a obra de C. Cardew, não sabia que a intenção da obra era a interpretação dos músicos de forma livre, então fiquei completamente imerso na apresentação, tentando compreender como os músicos estavam reagindo ao que estava sendo mostrado. Em alguns momentos, eu consegui entender os gestos que os músicos faziam para expressar símbolos específicos da obra. Por exemplo, quando apareciam números na projeção, o Dr. Manuel Falleiros fazia um estalo com os lábios (técnica chamada de Slap Tongue) na embocadura do saxofone que segurava. Se o número fosse 1, ele faria um único estalo. Se fosse 2, ele faria dois estalos. Abaixo, há uma imagem que mostra um dos trechos da obra com números, para facilitar a compreensão.

Página 92 da obra “O Tratado” de C. Cardew.

Fonte: https://core.ac.uk/download/pdf/234136727.pdf


            Algumas expressões que notei também foram feitas pelo Prof. Dr. André Martins e pelo Bruno Trochmann. Em certos trechos da obra, havia linhas contínuas que apareciam em várias páginas. Quando essas linhas retas surgiam, o Bruno prolongava uma nota no violino por um longo tempo, às vezes até que as linhas desaparecessem. Enquanto isso, o Prof. Dr. André executava arpejos rapidamente, já que na parte superior havia outros símbolos. Abaixo segue uma imagem da página 66 da obra que ilustra as linhas em questão, localizadas na parte inferior da imagem.

Página 66 da obra “O Tratado” de C. Cardew.

Fonte: https://core.ac.uk/download/pdf/234136727.pdf

 

Durante a performance do Ensemble Eletroacústicos NICS, observei o uso de técnicas de instrumentos expandidos pelos músicos. Essas técnicas são recursos frequentemente utilizados em momentos de improvisação e performance, especialmente por músicos eletroacústicos (MENESES; NOVO JR, 2016). Em geral, consistem em produzir sons, de maneira não convencionais, a partir do instrumento, como tocar percussivamente o tampo do violino, tocar com pouca pressão nos dedos da mão esquerda ou mexer nas cravelhas enquanto se fricciona as cordas com o arco (COPETTI; TOKESHI, 2005). Durante essa apresentação, observei que o Dr. Manuel Falleiros utilizou a técnica de derramar água dentro do saxofone, o que (segundo ele explicou depois do concerto), permitiu alcançar duas notas a mais, seja acima ou abaixo, do que seria possível em condições normais do instrumento.

Recomendo vivamente assistir a um concerto eletroacústico, como o de "O Tratado" de C. Cardew, pois há muitos movimentos durante a apresentação que não podem ser descritos em palavras e envolvem muito a expressão dos músicos. Essa é uma experiência única e enriquecedora que traz muitos aprendizados. Concluo aqui a terceira parte sobre o evento "40 anos do NICS". É uma honra fazer parte desse núcleo. Vida longa ao NICS!!!

 

Referências Bibliográficas

CAGE, John. Silence: Lectures and Writings. Middletown, Conn.: Wesleyan University Press, 1961.

CARDEW, Cornelius. Cornelius Cardew: A Reader. Harlow, Essex: Copula, 2006

COPETTI, R.; TOKESHI, E. Técnica expandida para violino: classificação e avaliação de seu emprego na música brasileira. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA, 15., 2005, São Paulo. Anais... São Paulo: ANPPOM, 2005. p. 318-323.

ECO, Umberto. A Obra Aberta. São Paulo: Perspectiva, 2013.

LEMOS, Gabriel Francisco Barboza. O Tratado musical de Cornelius Cardew. Revista Nupeart, Florianópolis, v. 16, n. 15, p. 50-66, set. 2016. Disponível em: https://www.revistas.udesc.br/index.php/nupeart/issue/view/576/58. Acesso em: 20 abr. 2023.

MENESES, Eduardo Aparecido Lopes; NOVO JR, José Eduardo Fornari. Experimentos tecnológicos e experiências didáticas na construção e performance de um instrumento musical expandido. In: XXVI CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA, 2016, Belo Horizonte. Anais do XXVI Congresso da ANPPOM. Belo Horizonte: ANPPOM, 2016. Modalidade: Comunicação. Subárea: Música e Interfaces.

NYMAN, Michael. Experimental Music: Cage and beyond. Nova Iorque: Schirmer Books, 1974.

ROSSI, Nathalia Angela Fragoso; BARBOSA, Rogério Vasconcelos. Treatise (Cornelius Cardew): análise visual e musical das páginas 1 a 4. In: Nas Nuvens... Congresso de Música, 3., 2017, Anais... p. 388-414. Disponível em: http://musicanasnuvens.weebly.com/. Acesso em: 15 abr. 2023.

TILBURY, John. Cornelius Cardew. Contact, v. 26, p. 4-11, 1983. Disponível em: https://core.ac.uk/download/pdf/234136727.pdf. Acesso em: 20 abr 2023.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. São Paulo: Edusp, 2010



[1] Casa do lago da Unicamp. Disponível em: https://www.casadolago.proec.unicamp.br/

[2] Concerto “O Tratado” de C. Cardew interpretada por Ensemble Eletroacústico do NICS. Disponível em: https://www.nics.unicamp.br/nics40anos/

[3] A música indeterminada foi conceituada por John Cage como aquela que apresenta elementos que são decididos no momento da execução ou apresentação da composição, em que o compositor deixa algumas decisões para o intérprete escolher como realizar o que foi solicitado (CAGE, 1961). Esse termo foi inspirado no I-Ching (Livro das Mutações) por Cage para desenvolver a ideia de não intenção na música.


Como referenciar este artigo:

ARRUDA, Leonardo. NICS: 40 Anos de Comunicação Sonora (Parte 3) - Concerto Ensemble Eletroacústico NICS. Blog C4, Campinas, NICS; UNICAMP, 08 maio 2023. ISSN: 2764-5754. Disponível em: <https://unicampc4.blogspot.com/2023/05/nics-40-anos-de-comunicacao-sonora_8.html>