Simulações de paisagens sonoras históricas na franquia de games Assassin’s Creed – parte 1

Vinicius Yglesias

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O presente artigo tem como objetivo investigar de que forma as paisagens sonoras de períodos históricos diversos são representadas na paisagem sonora virtual dos games da franquia Assassin’s Creed (AC), desenvolvidos pela Ubisoft. A franquia, atualmente, conta com 12 games lançados de 2007 a 2020, além de spin-offs  (games com enredo próprio, sem relação direta com os principais) e publicações em outras mídias, como livros e histórias em quadrinhos. É entendido como paisagem sonora virtual a soma do ambiente sônico do game, que se refere às sonoridades diegéticas do espaço virtual do game (YGLESIAS; CAMARGO; FORNARI, 2022) com a trilha musical (CARRASCO, 2010; CAMARGO, 2022).


Capa do primeiro game da franquia


O enredo dos games da franquia gira em torno da busca por artefatos mágicos conhecidos como “Fragmentos do Éden” (Pieces of Eden), supostamente criados por uma civilização anterior à espécie humana conhecida apenas como “Primeira Civilização” ou “Aqueles que Vieram Antes”. Ford (2021, s/p) relaciona essa noção de busca por uma civilização perdida presente em games à noção de fantologia (hauntology) de Jacques Derrida (2006), afirmando que “(...) a (re)aparição de fantasmas, povos extintos e entidades há muito adormecidas são pistas contextuais de um modo de pensamento fantológico(...)1. Estes artefatos místicos fazem com que os sons criptofônicos (MENEGUETTE, 2016), ou seja, sons fantásticos ou místicos da paisagem sonora virtual do game ocorram com frequência, ainda que evidentemente sejam apenas um artifício do enredo do game.

Nos games da franquia AC, essa busca é realizada por meio de um equipamento chamado Animus, o qual permite que o protagonista do game reviva memórias de seus antepassados, estes representados por personagens fictícios controlados pelo jogador. A maioria dos protagonistas são membros de uma organização chamada de “Ordem dos Assassinos”, que ao longo de todos os games, busca evitar que estes artefatos sejam obtidos pela “Ordem dos Cavaleiros Templários”, que representam os antagonistas dos games. Ambas as ordens também existiram historicamente no mundo real, embora o protagonista seja fictício, assim como diversos eventos dos combates entre ambas as organizações.



À esquerda, o símbolo da Ordem dos Cavaleiros Templários, e à direita, o símbolo da Ordem dos Assassinos.


Embora o enredo principal se passe no presente, durante a maior parte do tempo o jogador explora o período histórico que o game apresenta, seja seguindo o enredo principal planejado pelos desenvolvedores ou explorando o mundo virtual do game livremente, fator possibilitado pelo game ser do gênero de mundo aberto, que permite essa exploração (SQUIRE, 2008). Isso faz com que os games, na prática, possuam dois protagonistas, um protagonista contemporâneo, o qual o jogador controla durante o século XXI no enredo do game, e um protagonista histórico, antepassado do protagonista contemporâneo, o qual o jogador controla no período histórico retratado em cada game. Estes artigos terão maior foco no enredo dos protagonistas históricos, visto que o objeto de análise são as paisagens sonoras virtuais presenciadas por estes ao longo dos games.

Algumas das características principais que abarcam toda a franquia incluem a interação do jogador, por meio do controle do protagonista do game, com personagens históricos como Cleópatra, Leonardo da Vinci e Sócrates, além da participação ativa em eventos históricos, como a Revolução Francesa e a Guerra do Peloponeso, por exemplo. Em busca de criar um ambiente imersivo, a verossimilhança com a maneira que esses eventos teriam ocorrido é um elemento constantemente buscado pelos desenvolvedores, embora evidentemente liberdades criativas sejam tomadas, especialmente em relação ao enredo e à jogabilidade.2 Dessa forma, a simulação das paisagens sonoras desses períodos é tomada como objeto de pesquisa deste artigo em busca de investigar como elas são representadas nos games da franquia. Serão abordados apenas os seis primeiros games da franquia principal, em ordem de lançamento.

O primeiro game, intitulado apenas Assassin’s Creed, lançado em 2007, inicia quando Desmond Miles, protagonista contemporâneo, é raptado pela indústria Abstergo (que no enredo do game são membros secretos da Ordem dos Cavaleiros Templários contemporânea) para participar, contra sua vontade, do projeto Animus, por ser um descendente direto da Ordem dos Assassinos. O período histórico que o game representa é a Idade Média, mais especificamente o ano de 1191, durante a Terceira Cruzada, ocorrida entre o ano 1189 e 1202 (RILEY-SMITH, 2009). O protagonista histórico, controlado pelo jogador, é o personagem Altaïr Ibn-La’Ahad, um dos membros mais habilidosos da Ordem dos Assassinos, à época comandada por Rashid al-Din Sinan (RESTON, JR, 2001), um dos personagens históricos do game. Ao longo do game, o jogador também pode explorar as representações das cidades de Masyaf, Jerusalém, Acre e Damasco, que também são cidades reais do Oriente Médio, localizadas nos territórios que atualmente correspondem à Síria e a Israel.

Um dos sons mais característicos do período medieval, conforme descrito por Schmitt (2020), Schafer (1977; 2011) e Arnold e Goodson (2012), são os sons de sinos, que possuíam significados e funções diversas, sendo o que Schafer (2011) chama de sinais, que se referem a sonoridades criadas para serem conscientemente percebidas. Não é coincidência, portanto, que ainda no trailer de divulgação deste primeiro game da franquia, um dos principais sons de um dos trailers do game seja o de um sino, que tanto dita, de certa forma, o “ritmo” do trailer, quanto, de certa forma, anuncia o assassinato que ocorrerá no trailer.


Os sinais dos sinos presentes no game também são destacados por El-Nasr et al. (2008), assim como os cantos de monges, na cidade do Acre (WARDE-BROWN, 2021). El-Nasr et al. (2008) escrevem, ainda, que de acordo com a origem do jogador, os sentimentos em relação às paisagens, sonoridades e estética do game em geral podem ser diversos. Conforme descrevem, para habitantes ou indivíduos que cresceram no Oriente Médio, a exploração da representação virtual desses ambientes presente no game pode causar um sentimento até mesmo de nostalgia diante da possibilidade de explorar tão de perto esses locais. Por outro lado, para os ocidentais, os autores escrevem que os movimentos permitidos pela jogabilidade, como a possibilidade de pular entre telhados, escalar edifícios e agir furtivamente, se tornam mais atrativos, além de serem reforçados pela beleza arquitetônica dos cenários.

Por meio dessas descrições, nota-se que o fator interativo da mídia dos games, aliado à uma percepção de fidelidade da paisagem sonora virtual com a paisagem sonora histórica representada tem o potencial de ampliar a imersão do game, chegando a sugerir até uma certa nostalgia para jogadores familiarizados com os ambientes representados.


Por fim, neste game, a dublagem é também um elemento marcante na paisagem sonora virtual de AC, seja nas vozes dos personagens mais relevantes, que, ao menos na versão em inglês, contam com sotaques característicos da região, ou nos conflitos que ocorrem entre as ruas e vielas das cidades entre seus guardas e cidadãos sendo presos injustamente, tornando-se uma demonstração de como no período medieval, conforme descreve Schmitt (2020, p. 48), os sons “hierarquizam e classificam o mundo [medieval]”.


Dessa forma, conforme será visto nos artigos seguintes, os games da franquia ao longo do tempo tornaram-se um frutífero objeto de pesquisa especialmente na área de história, visto que proporcionam interação com uma representação imersiva e, dentro dos limites da mídia, que busca ser o mais fiel possível a como teriam sido na história, tornando-se também um potencial objeto de estudo para a pesquisa sobre paisagens sonoras históricas.


Notas

1 the (re)appearance of ghosts, extinct peoples and long-dormant entities are contextual clues of a hauntological mode of thinking(...).

2 Uma das mais conhecidas é chamada “salto de fé”, uma habilidade que permite o protagonista pular de alturas que seriam mortais na vida real sem se machucar, desde que caia na água ou em um monte de feno.


Referências Bibliográficas

ARNOLD, John H.; GOODSON, Caroline. Resounding Community: The History and Meaning of Medieval Church Bells. Viator, v. 43, no. 1, pp. 99-130, 2012.

CAMARGO, Fernando E. Relato de experiência: elaboração da trilha sonora para o game Os Heróis do Diabetes. In: SBGAMES, 22., 2022, Natal. Anais eletrônicos…: Trilha Artes e Design – Full Papers. Natal: Sociedade Brasileira de Computação, 2022.

CARRASCO, Ney. Trilhas: o som e a música no cinema. ComCiência. no. 116. Campinas, 2010.

DERRIDA, Jacques. Specters of Marx: The state of the debt, the work of mourning and the New International. New York: Routledge, 2006.

EL-NASR, Magy Seif et al. Assassin’s Creed: A Multi-Cultural Read. Loading…, v. 2, no. 3, 2008.

FORD, Dom. The Haunting of Ancient Societies in the Mass Effect Trilogy and The Legend of Zelda: Breath of the Wild. The International Journal of Computer Game Studies, v. 21, no. 4, 2021.

RESTON, JR, James. Warriors of God: Richard the Lionheart and Saladin in the Third Crusade. New York: Random House, Inc, 2009.

RILEY-SMITH, Jonathan. What Were the Crusades? 4 ed. San Francisco: Ignatius Press, 2009.

SCHAFER, R. Murray. The soundscape: our sonic environment and the tuning of the world. Destiny Books. Rochester, Vermont, 1977.

______. A afinação do mundo: uma exploração pioneira pela história passada e pelo atual estado do mais negligenciado aspecto do nosso ambiente: a paisagem sonora / R. Murray Schafer; tradução Marisa Trench Fonterrada. – 2.ed. – São Paulo: Editora Unesp, 2011. 382p.: il

SCHMITT, Jean-Claude. Pregoeiros, sinos, cantos e vozes do além: os sons na Idade Média. Sociétés & Représentations, n. 49, p. 27-48, 2020.

SQUIRE, Kurt. Open-Ended Video Games: A Model for Developing Learning for the Interactive Age. In: SALEN, Katie (Ed.). The John D. and Catherine T. MacArthur Foundation Series on Digital Media and Learning. Cambridge, MA: The MIT Press, 2008.

WARDE-BROWN, Ailbhe. Waltzing on Rooftops and Cobblestones: Sonic Immersion through Spatiotemporal Involvement in the Assassin’s Creed Series. Journal of Sound and Music in Games, v. 2, no. 3, pp. 34–55, 2021.

YGLESIAS, Vinicius. CAMARGO, Fernando Emboaba de. FORNARI, José. Da Paisagem Sonora ao Ambiente Sônico: uma proposta taxonômica para o estudo de paisagens sonoras em games. In: SBGAMES, 22., 2022, Natal. Anais eletrônicos…: Trilha Artes e Design – Full Papers. Natal: Sociedade Brasileira de Computação, 2022.


Como referenciar este artigo

YGLESIAS, Vinicius. Simulações de paisagens sonoras históricas na franquia de games Assassin’s Creed  – parte 1. Blog C4, Campinas: Nics; UNICAMP, 30 mai. 2023. ISSN: 2764-5754. Disponível em: https://unicampc4.blogspot.com/2023/05/simulacoes-de-paisagens-sonoras.html