Para tornar mais significativos e relevantes os sons de um game, um bom ponto de partida é atentar para que tais sons não sejam redundantes em relação às imagens, como acontece quando um personagem anuncia, digamos, “artificialmente” o que está fazendo: “Agora vou sacar a minha arma!”, ou uma informação fornecida pelo narrador que simplesmente repete o que as imagens estão comunicando: “O personagem caminhava triste em direção à porta”.
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Nos dois primeiros quadros, o texto narrativo descreve exatamente o que pode ser visto nas imagens, em explícita redundância de informações. |
Para evitar essa redundância de informações, há uma técnica narrativa chamada “show, don’t tell” (mostre, não conte),¹ atribuída ao escritor russo Anton Tchekhov,² para que o espectador experimente a história por meio de ações, palavras, pensamentos, sentidos e sentimentos ao invés de o autor entregar tudo “mastigado”, não permitindo a inferência e interpretação por parte da audiência. A técnica busca evitar o uso excessivo de adjetivos, privilegiando descrições mais criativas para que os leitores possam tirar suas próprias conclusões. Uma frase como “Ele estava triste” é menos propensa a suscitar emoções do que a oportunidade de ver a tristeza no semblante do personagem, pois pode criar identificação e evocar emoções de maneira mais eficaz, já que o autor não está “traduzindo” para o público o que o personagem está sentindo, e sim mostrando a manifestação física do sentimento do personagem – com olhar carregado de tristeza, olhos marejados de lágrimas, lábios arqueados para baixo etc. –, para que o público interprete a cena por si só, requerendo a participação desse público, e não apenas “entregando de bandeja” a situação narrada.
No caso específico da comunicação sonora, o ideal é que sons e imagens sejam empregados de maneira colaborativa, associativa, sinérgica, ainda que muitas vezes não de forma realista (como o som de tilintar de metal quando uma moeda é arremessada por alguém). Uma forma de compreender como os sons são empregados para suscitar emoções são os conceitos e teorias pesquisados ou desenvolvidos pelo canadense David Huron, professor da Ohio State University.
A música é capaz de evocar diversos sentimentos, do trivial ao sublime, mas nem todas as emoções são igualmente fáceis de evocar: tristeza, alegria ou ternura são sentimentos comumente evocados, ao contrário de ganância, ciúme ou culpa (HURON, 2015). Diversas técnicas e conceitos são propostos para explicar essa capacidade de evocar emoções por meio da música, como respostas auditivas inatas, associações aprendidas (como memórias afetivas ou culturais), processos de neurônios-espelho,³ condições psicológicas (um indivíduo com alta pontuação em neuroticismo⁴ é mais propenso a caracterizar uma música como triste) (HURON, 2015), entre outras, como a teoria ITPRA de Huron, que veremos adiante.
Músicos e designers de som buscam evocar emoções nos ouvintes por meio de sons abstratos não representativos, o que, por si só, já é desafiador (HURON, 2006). Para tal, é comum que compositores façam uso de certos clichês, como acordes menores acompanhados de ricas sonoridades no baixo para evocar melancolia e tragédia, acordes de sétima diminuta com tremolo rápido para evocar suspense ou a introdução de um acorde cromático alto em uma batida fraca para evocar surpresa (HURON, 2006). Mas para que esses clichês funcionem, é necessário que compositor e ouvinte estejam “falando a mesma língua”⁵ – nas palavras de Huron (2015, p. 2): “A existência de uma cultura musical depende de experiências compartilhadas.”⁶ Ou seja, ambos precisam compartilhar conceitos preestabelecidos e convenções, caso contrário, a comunicação pode não se dar como o esperado, como por vezes ocorre quando uma pessoa do ocidente ouve uma composição do oriente, regiões que possuem sistemas musicais bastante distintos. E diante desse compartilhamento de informações sonoras, há também a questão da expectativa, conceito criado pelo compositor e filósofo norte-americano Leonard B. Meyer, que, em seu livro Emotion and Meaning in Music, de 1956, argumentou que o conteúdo emocional da música surge principalmente da expectativa, e que um compositor pode cumprir ou frustrar a expectativa de um ouvinte ou simplesmente atrasar um resultado esperado.
No livro Sweet Anticipation: music and the psychology of expectation (2006), Huron revisitou os conceitos de Meyer e os ampliou, com seu conceito de expectativa e antecipação, que ele esmiúça por meio de sua teoria ITPRA, sigla para Imagination, Tension, Prediction, Reaction e Appraisal, que são cinco sistemas de respostas emocionais, com funções biológicas distintas, relacionados à expectativa:
1) Imaginação: motivação comportamental orientada para o futuro; permite gratificação diferida. O que você acha que pode acontecer e como se sente em relação a essa perspectiva?
2) Tensão: excitação e atenção na preparação para eventos antecipados. Você está pronto para o que está prestes a acontecer? Como os preparativos fazem você se sentir?
3) Predição: reforço negativo ou positivo para estimular a formação de expectativas precisas. Você “fez uma boa aposta”, previu o resultado com precisão? Está satisfeito ou desapontado com a sua aposta?⁷
4) Reação: respostas neurologicamente rápidas que pressupõem uma avaliação do pior caso do desfecho. Presumindo o pior, como você reagiu? Como essa reação faz você se sentir?
5) Avaliação: avaliação neurologicamente complexa do resultado final (cognitiva, racional), que resulta em reforços negativos/positivos. Após reflexão, como você se sente quanto à maneira como as coisas ocorreram?
Na segunda parte deste artigo (disponível aqui), veremos mais sobre a teoria ITPRA, além de outros conceitos de David Huron muito úteis para evocar emoções em games por meio da trilha sonora. Até lá!
Notas:
¹ A técnica do show, don’t tell tem profunda relação com o conceito de mimese (mimesis), que consiste em encenar uma ação, em contraposição ao conceito de diegese (diegesis), que se refere à narração de uma ação por um narrador. Ambos surgiram no período clássico da Grécia Antiga, com Sócrates, Platão e Aristóteles. Ver: <http://www.lhn.uni-hamburg.de/node/36.html>.
² Tchekhov escreveu esse conceito em uma carta ao irmão: “Não me diga que a lua está brilhando; mostre-me o brilho da luz no vidro quebrado.”, e ainda “Nas descrições da natureza, deve-se aproveitar os pequenos detalhes, agrupando-os de modo que, quando o leitor fechar os olhos, obtenha uma imagem. Por exemplo, você terá uma noite enluarada se escrever que, na represa do moinho, um pedaço de vidro de uma garrafa quebrada brilhou como uma estrelinha brilhante, e que a sombra negra de um cachorro ou um lobo rolou como uma bola.” (“Don't tell me the moon is shining; show me the glint of light on broken glass.”, “In descriptions of Nature one must seize on small details, grouping them so that when the reader closes his eyes he gets a picture. For instance, you’ll have a moonlit night if you write that on the mill dam a piece of glass from a broken bottle glittered like a bright little star, and that the black shadow of a dog or a wolf rolled past like a ball.”) (YARMOLINSKY, 1954, p. 14).
³ Neurônio que atua quando um animal observa outro animal, geralmente da mesma espécie, realizando determinada ação e é impelido a imitar aquela ação como se ele próprio estivesse realizando a ação. Por exemplo: quando vemos alguém bocejando e também bocejamos. Os neurônios-espelhos desempenham papel importante no aprendizado e aquisição da linguagem por parte da neurociência.
⁴ O neuroticismo é uma tendência a ser tomado por emoções negativas (tristeza, culpa, inveja, raiva, ansiedade etc.) diante de eventos corriqueiros. É um dos Cinco Grandes (Big Five) traços de personalidade no estudo da psicologia: neuroticismo (sensível/nervoso vs. resiliente/confiante), abertura à experiência (inventivo/curioso vs. consistente/cauteloso), consciência (eficiente/organizado vs. extravagante/descuidado), extroversão (extrovertido/energético vs. solitário/reservado) e amabilidade (amigável/compassivo versus crítico/racional). Ver: <https://doi.org/10.1037/0003-066X.48.1.26> e <https://doi.org/10.1177/0146167202289008>.
⁵ Tanto compositores quanto ouvintes não músicos “aprendem” essa língua por diferentes vias. Um ouvinte que não faz ideia do que é uma sétima diminuta ainda compreende cognitivamente o sentimento evocado por esse acorde por conta, por exemplo, de experiências culturais.
⁶ “The existence of a musical culture depends on shared experiences.”
⁷ Tensão e predição ocorrem simultaneamente, o que denota ação conjunta de razão e emoção.
Referências:
HURON, David. Affect induction through musical sounds: an ethological perspective. Phil. Trans. R. Soc. B, London: The Royal Society, v. 370, n. 1664, Mar. 2015. DOI: <http://dx.doi.org/10.1098/rstb.2014.0098>.
HURON, David. Sweet anticipation: music and the psychology of expectation. Cambridge (EUA): MIT Press, 2006.
YARMOLINSKY, Avrahm. The Unknown Chekhov: stories and other writings hitherto untranslated by Anton Chekhov. New York: Noonday Press, 1954.
Como referenciar este artigo:
PASSOS, Leonardo Porto. Emoções evocadas por sons em games: mostrar é melhor do que explicar - parte 1. Blog C4, Campinas: Nics; Unicamp, 1 jul. 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em: <https://unicampc4.blogspot.com/2022/07/emocoes-evocadas-por-sons-em-games-1.html>.