Emoções evocadas por sons em games: mostrar é melhor do que explicar - parte 2

Leonardo Porto Passos

leoportopassos@gmail.com

leoportopassos.com.br

lattes.cnpq.br/5145986864380281


Na primeira parte deste artigo, disponível aqui, além do conceito de show, don’t tell, também foi abordada a teoria ITPRA, de David Huron, assunto que daremos continuidade nesta segunda parte, além de outros temas correlatos do mesmo autor.

A teoria ITPRA alega que – mesmo sem nos darmos conta, por se tratar de um processo parcialmente inconsciente – existe uma relação de comunicação entre compositor, que transmite uma mensagem, e ouvinte, que recebe essa mensagem, e para isso, é necessário que ambas as partes “falem a mesma língua”, ou melhor, que utilizem convenções em comum para que a comunicação se estabeleça com eficácia e antecipação (o compositor “antevê” as emoções que o ouvinte irá sentir). Nem sempre um compositor quer ser pronta e plenamente compreendido com uma peça musical – ainda que queira impactar emocionalmente o ouvinte –, e assim busca fugir de clichês e lugares-comuns fazendo uso de formas musicais inventivas para exprimir suas ideias – como um poeta, que abre mão de construções verbais simplórias e emprega recursos como figuras de linguagem para conferir maior expressividade e criatividade ao texto. Porém, se o caso for justamente que a música seja assimilada e a comunicação se dê de maneira efetiva, é necessário que o compositor faça uso de conceitos interpretáveis pelo ouvinte. Portanto, é preponderante ter em mente o público-alvo e suas características.

Ao utilizar os cinco sistemas de respostas emocionais da teoria ITPRA de Huron (2006), o compositor de trilhas para games tem um excelente ponto de partida para definir exatamente o que deseja transmitir com sua música, tornando seu intento factível por meio de convenções melódicas, rítmicas e timbrísticas. Alguns exemplos de clichês musicais: evitar predições por parte do ouvinte pode causar surpresa; progressões harmônicas que não se concluem podem causar tensão; padrões intervalares convencionais podem causar sensação de conforto e familiaridade; aumentar o andamento pode causar euforia; ritmos com bastante groove tendem a ser mais animados; e assim por diante.

A antecipação musical remete ao estudo da comunicação animal por seu viés duplo, tanto racional quanto instintivo (ou irracional). Assim, além de sua teoria ITPRA, Huron (2012, 2015a, 2015b) também pesquisou em profundidade o conceito de sinais e pistas etológicos, que ele adaptou para a música.

A etologia é o “estudo do comportamento social e individual dos animais em seu habitat natural” (HOUAISS, 2009, verbete “etologia”). Um sinal etológico é um comportamento comunicativo proposital com a intenção de gerar uma resposta/reação no receptor da mensagem, como é o caso do chocalho de uma cascavel ou o rosnado de um cachorro, que servem como aviso: “Olha, se você chegar mais perto, vou te atacar. É melhor se afastar…”. 

Já uma pista etológica é um comportamento não funcional que acaba sendo informativo por conta de experiência prévia do “receptor”, como é o caso do zumbido de um pernilongo, que sugere que seremos picados porque já conhecemos aquele som e sabemos o que pernilongos fazem, mas o inseto não teve a intenção de comunicar que irá nos picar, ou seja, o zumbido é uma consequência não intencional do bater das asas do inseto, e não um ato comunicativo funcional.

Tanto o sinal quanto a pista etológica sugerem a possibilidade de um ataque, mas o primeiro é um sinal funcional, enquanto o segundo é uma sugestão não intencional.¹ Os dois sons são informativos, mas apenas o sinal é intencionalmente comunicativo, pois seu propósito é mudar o comportamento do observador, para benefício mútuo do emissor e do receptor da mensagem. O chocalho e o rosnado servem para afugentar um possível agressor, mas há diversos tipos de sinais etológicos, como o choro, que busca evocar sentimentos de compaixão no receptor, ou a risada, que demonstra que o emissor está feliz e receptivo.

Os sinais são conspícuos, e para torná-los ainda mais perceptíveis, é comum que sejam multimodais. Assim, pela natureza de suas funções, as pistas tendem a ser unimodais (somente visual ou somente sonora, por exemplo), enquanto os sinais tendem a ser multimodais (visual e sonora). A cascavel levanta a cauda para balançar o chocalho, o cachorro expõe os dentes e franze o cenho enquanto rosna, ambos com a intenção de tornar ainda mais evidente a mensagem. O mesmo ocorre na música: quando um cantor aumenta ou diminui o tom da voz, suas sobrancelhas tendem a subir ou descer de acordo com o tom. Além disso, ao produzir um tom grave, a cabeça tende a se inclinar para baixo e o queixo cai, e ao produzir um tom agudo, a cabeça tende a se inclinar para cima e a boca forma um sorriso. Ou seja, trata-se de uma tendência multimodal de um sinal etológico. Comunicações imagética e sonora são utilizadas para garantir que a mensagem seja efetivamente recebida.

Na terceira e última parte deste artigo (disponível aqui), serão discutidas formas de como o conceito de sinais e pistas etológicos pode ser utilizado na trilha sonora de um game, além de serem apresentados outros conceitos de Huron: o Modelo Etológico Acústico (Acoustic Ethological Model - AEM) e as fontes de emoções (sources of emotion). Até lá!

Sons que evocam emoções em games: mostrar é melhor do que explicar - parte 1


Notas:
¹ Huron (2015a, 2015b) utiliza o termo "artefactual".

Referências:
HOUAISS, Antonio (Instituto). Houaiss Eletrônico. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. Versão 3.0. CD-ROM.
HURON, David. Affect induction through musical sounds: an ethological perspective. Phil. Trans. R. Soc. B, London: The Royal Society, v.  370, n. 1664, Mar. 2015a. DOI: <http://dx.doi.org/10.1098/rstb.2014.0098>.
HURON, David. Cues and signals: an ethological approach to music-related emotion. Signata [Online], n. 6, 2015b. DOI: <http://doi.org/10.4000/signata.1115>.
HURON, David. Sweet anticipation: music and the psychology of expectation. Cambridge (EUA): MIT Press, 2006.
HURON, David. Understanding music-related emotion: lessons from ethology. In: ICPMC, 12.; ESCOM, 8., 2012, Thessaloniki, Greece. Proceedings… CAMBOUROPOULOS, E.; TSOUGRAS, C.; MAVROMATIS, P.; PASTIADIS, K. (Editors), 2012, p. 473-481.

Como referenciar este artigo:
PASSOS, Leonardo Porto. Emoções evocadas por sons em games: mostrar é melhor do que explicar - parte 2. Blog C4, Campinas: Nics; Unicamp, 22 jul. 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em: <https://unicampc4.blogspot.com/2022/07/emocoes-evocadas-por-sons-em-games-2.html>.