A íntima ligação entre música, jogo e cultura


Vinicius Yglesias

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A relação entre música e cultura é um aspecto bastante natural da espécie humana (HUIZINGA, 2000, p. 115). Não faltam exemplos dessa íntima ligação em todas as regiões do mundo. No penúltimo artigo aqui do blog C4, o colega Leonardo Arruda trouxe uma dessas relações, escrevendo sobre a guitarra elétrica no contexto do jazz americano. Outro exemplo comum é quando no senso comum utilizamos termos como “música africana” ou “música indiana” para nos referirmos a aspectos musicais que, mesmo sem sabermos explicar o porquê, nos remetem diretamente a algum tipo de identidade cultural desses lugares, ainda que essa relação deva ter alguma cautela, visto que esses termos são apenas generalizações que não representam de fato um país, e muito menos um continente inteiro. (FRIDMAN, 2016).


E onde entra o jogo nisso? Bem, tomando o jogo em sua definição mais abrangente, como sinônimo de brincadeira (HUIZINGA, 2000, p. 115), basta lembrarmos de algumas brincadeiras comuns da infância de muitas pessoas. As diversas versões de cantigas de pular corda; a brincadeira “Pão na casa do João”, onde o pobre João, que vivia tendo seu pão roubado dentro de sua própria casa, ao passo que o acusado se indignava em um glissando ascendente; o pulso constante das rodas de “Adoleta” em sua curiosa mistura com o francês; esses e tantos outros exemplos são uma pequena quantia de casos que representam a união inseparável entre música, jogo e cultura que nos acompanha desde a nossa infância.


Sendo uma relação tão íntima, não é de se estranhar que, de maneira consciente ou não, ela seja transportada para as criações humanas de narrativas fictícias. Um exemplo no qual essa relação é bastante nítida é no game (jogo digital) Outer Wilds, de 2019, desenvolvido pela Mobius Digital e Annapurna Interactive. O game possui um universo extremamente rico a ser explorado, mas nesse texto eu gostaria de focar em um evento bem específico, curto e simples, mas que revela muito da cultura do Recanto Lenhoso, nome do vilarejo onde iniciamos nossa aventura no game.



Contextualizando o enredo do game, somos colocados na posição de um astronauta prestes a ir para a nossa primeira viagem espacial. Um início bastante emocionante, certo? Então o que poderia fazer com que prorrogássemos nossa aventura? Nada, exceto talvez, Tefra e Galena, duas crianças muito empolgadas para brincar de esconde-esconde. Mas diferentemente de uma brincadeira normal de esconde-esconde, não precisamos procurar aleatoriamente em todos os cantos do mapa, pois possuímos um onduloscópio, um equipamento fictício do game que nos permite captar sons a qualquer distância. E como as crianças vão se esconder carregando um rádio, basta utilizarmos nosso onduloscópio para encontrá-las, buscando o som do aparelho e indo até ele.







O que chama a atenção aqui é que a música tocada no rádio das crianças soa bastante contemporânea, com intenso uso de sintetizadores e efeitos de mixagem. Mas se foi com o uso de sintetizadores que a música nasceu nos games, já que na verdade era a única opção disponível no início dos anos 1980 (CAMARGO, 2018; COLLINS, 2008), por que, nesse contexto, isso chama tanto a atenção?


Isso acontece porque essa estética composicional, nos games, é muito comum em músicas extra-diegéticas (JØRGESEN, 2007), ou seja, em músicas que são ouvidas apenas pelo jogador, mas que não existem dentro do mundo do game. Mas no ambiente diegético, ou seja, em sons escutados também pelos personagens do game, é menos comum elas aparecerem em jogos atuais, a menos que haja um motivo narrativo para isso. Por exemplo, caso tentem jogar Super Mario Bros. sem som, o silêncio resultante é o que mais se aproxima do que o encanador mais amado dos games estaria ouvindo, já que no game não é possível deixar ligado apenas os efeitos sonoros como na maioria dos games atuais.


Antes dessa brincadeira de esconde-esconde, os únicos sons diegéticos que havíamos escutado, eram os sons naturais do vento, da água, dos insetos, e Gneiss, um dos personagens do game, afinando seu banjo.



Mas quando escutamos a música no rádio de Tefra e Galena, isso nos revela, ou ao menos nos permite imaginar, muitas informações acerca da cultura musical do Recanto Lenhoso. A primeira e mais nítida é como a escuta de rádio deve ser comum no vilarejo, visto que mesmo as crianças se interessam por ela. A segunda é a vastidão e abrangência do conhecimento musical que os Lenhosos (nome da espécie que vive no vilarejo, da qual o protagonista também pertence) devem possuir, já que, mesmo que nenhum sintetizador ou estúdio de gravação apareça durante o game, podemos ouvir as suas características nessa música diegética.


Claro, toda música de um game é necessariamente gravada e editada com equipamentos atuais do mundo real, mas quando essas informações passam para a sua diegese , ou seja, quando se tornam parte de seu “mundo virtual” (JØRGESEN, 2007), com o qual os personagens também interagem, tornam-se também parte do conhecimento tecnológico, musical e cultural daquele povo, reforçando no jogador o sentimento de que, como diz Camargo (2018), está em um mundo virtual consistente, que existe por si, com suas próprias leis, regras, ideais, políticas, ideologias, e que toda essa riqueza cultural está lá para ser explorada pelo jogador. E tudo isso descoberto apenas com uma brincadeira de esconde-esconde.



Referências

ARRUDA, Leonardo. Guitarra elétrica: uma sonoridade eletrizante (parte 1). Blog C4, Campinas, NICS; UNICAMP, 01 abr. 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em: <https://unicampc4.blogspot.com/2022/04/guitarra-eletrica-uma-sonoridade.html>

CAMARGO, Fernando Emboaba de. Interatividade e Narratividade sonora nos games. Universidade Estadual de Campinas, 2018. Área de concentração em Música: Criação, Teoria e Prática. Instituto de Artes. Campinas, 2018. 188p.

COLLINS, Karen. Game sound : an introduction to the history, theory and practice of video game music and sound design / Karen Collins. Massachusetts Institute of Technology. MIT Press. Cambridge, 2008. 204p.

FRIDMAN, Ana. Conversas musicais além-mar: um percurso por processos de criação, contextos formativos e propostas de improvisação / Ana Fridman - 1.ed. - Curitiba: Editora Prismas, 2016. 

HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. 4ª edição – reimpressão. Editora Perspectiva S.A. São Paulo, 2000.

JØRGESSEN, Kristine. ‘What are Those Grunts and Growls Over There?’ Computer Game Audio and Player Action. Tese de Doutorado. Copenhagen University, 2007. Section of Film and Media Studies. Department of Media, Cognition and Communication, 2007. 204p.


Como referenciar este artigo:

YGLESIAS, Vinicius. A íntima ligação entre música, jogo e cultura. Blog C4, Campinas: Nics; UNICAMP, 15 abr. 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em: <https://unicampc4.blogspot.com/2022/04/a-intima-ligacao-entre-musica-jogo-e.html>