A música eletroacústica e o áudio para games: irmãos separados no nascimento?


Vinicius Yglesias

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No começo do século XX, teve início, no âmbito da música erudita, um movimento por uma nova estética musical, que refletisse aqueles tempos modernos. Claude Debussy, famoso compositor francês, dizia que “o século do avião merece sua música”¹. (GRIFFITHS, 1994). Tais movimentos culminaram principalmente na elektronische musik alemã, que consistia na composição unicamente a partir de sons sintetizados, ou seja, na composição de “música eletrônica pura”, ao invés da manipulação de sons naturais (Ibidem), e na musique concrète francesa, que consistia na manipulação sonora a partir do processamento de objetos sonoros (SCHAEFFER, 2017), ou seja, no registro e transformação de quaisquer sons já existentes, sejam eles de instrumentos musicais ou não. Ambos movimentos ficaram genericamente conhecidos como “música eletroacústica”. (SANTAELLA, 2019a)


A criação de áudio para games talvez seja uma das maiores representações da razão pela qual Santaella (2019b) os considera como verdadeiros laboratórios de avanços tecnológicos. Se por um lado, por volta de 1965, a empolgação com gravação de música eletrônica parecia ter arrefecido (GRIFFITHS, 1994), por outro, os games sonoros que começaram a ser produzidos poucos anos depois, iniciando com Computer Space, em 1971, tinham no som, totalmente eletrônico, uma das maiores ferramentas de marketing da mídia, utilizados para atrair mais frequentadores para os arcades². (COLLINS, 2008; ROVERAN, 2017)





Porém, a popularização dos games sonoros chegou um ano depois, com o game Pong, no qual os efeitos sonoros eram apenas sinais periódicos escolhidos arbitrariamente, incorporados ao game de maneira não intencional (ROVERAN, 2017). Com a evolução tecnológica e consequente implementação dos chips³ de som, chips de computador incorporados a dois ou mais circuitos de áudio que poderiam ser programados independentemente (WESKE, 2000), a partir do Atari 2600, surge a possibilidade de composições sonoras mais complexas, consequentemente com maiores chances de atrair mais consumidores para os arcades (ROVERAN, 2017).






É possível dizer que os caminhos e os motivos que levaram a música eletroacústica para os games foram completamente diferentes daqueles que a levou para a sala de concerto. Pode-se dizer que foram até mesmo opostos.


Enquanto nos games, devido à limitação tecnológica da época, a síntese sonora era a única possibilidade de composição e permitia o uso de apenas três pistas de áudio simultâneas, já que havia pouco espaço na memória dos processadores para os sons, (ROVERAN, 2017; COLLINS, 2008), na música eletroacústica, ela era considerada por compositores como o auge da liberdade composicional, de certa forma desprendendo os compositores dos limites técnicos dos instrumentos orquestrais existentes (MOORER, 1977), permitindo que pudessem compor utilizando muito mais recursos musicais do que as doze notas do sistema temperado ocidental ou mesmo de frações dessas, tais quais quartos de tom, mais comumente utilizados em vertentes da música árabe e indiana. Enquanto de um lado, a síntese sonora era uma extrema limitação, do outro, era um caminho em aberto para uma maior liberdade composicional.


Então se por um lado, no áudio para games, a limitação do espaço de processamento permitia apenas o uso de sons sintetizados, por outro, essa limitação foi o que permitiu o foco daqueles compositores na criação de melodias marcantes, de grande apelo ao público, de maneira que até os dias atuais, mesmo pessoas sem contato frequente com games podem reconhecer rapidamente temas musicais famosos, como os de Super Mario Bros., Tetris e Pacman.


Além disso, essa inicial limitação tecnológica foi a responsável por criar a estética sonora que até hoje é associada aos games, conhecida como chiptune, já que mesmo que uma pessoa não associe a música de um dos games citados ao game propriamente dito, as qualidades tímbricas não deixarão dúvidas de que se trata da música de algum game, ou criada com a intenção de parecer ou de ser utilizada em um. O chiptune, inclusive, ainda é utilizado em games atuais, seja por impossibilidade de gravação das trilhas sonoras com instrumentos reais, seja de fato por escolha estética.




Mesmo após o barateamento e aumento de eficiência na memória dos processadores, fatores que abriram a possibilidade de gravação totalmente acústica ou utilização de amostras (samples) de sons naturais nas trilhas para os games (COLLINS, 2008), técnicas composicionais da música eletroacústica continuaram sendo utilizadas nas trilhas da mídia.


A título de exemplo, na fase "Upstream" da versão original de “Crash Bandicoot”, lançado em 1997, o som aparentemente diegético (conceito explicado em blog anterior) da água corrente está incluído na faixa de música, junto aos instrumentos convencionais, assim como eventuais sons referentes a comunicação animal de elefantes, macacos, etc, que podem ser escutados. O mesmo pode ser escutado na fase "The Great Gate", tanto na versão original de 1997 quanto na de 2017, fase na qual as vozes humanas aparentemente acusmáticas, ou seja, que parecem estarem presentes no cenário, somente acessível à audição do jogador, desaparecem ao ser silenciada a faixa de música do game e mantendo apenas a faixa de efeitos sonoros.








Apesar das diferenças entre a origem, os motivos, e as aplicações de processos composicionais eletroacústicos nos games e na música erudita, os games, como coloca Santaella (2019b), foram uma mídia que se aproveitaram muito bem das tecnologias disponíveis em sua época, sempre evoluindo a cada geração, tanto na construção do game em si quanto na qualidade sonora.


Ainda que não fosse a intenção, pode-se dizer que a música eletroacústica, principalmente a música eletrônica, com os sons sintetizados, foi o que formou a estética do áudio de games nos anos iniciais da mídia, das décadas de 1970 a 1980, e por outro lado, esta foi, de certa maneira, uma das mídias que mais popularizaram a recepção de timbres sintetizados e processos eletroacústicos de composição em uma música, ou no mínimo, os tornaram instigantes para um maior número de pessoas, dando novo fôlego a estéticas sonoras que no âmbito artístico talvez ficariam restritas ao conhecimento de poucos compositores.


Notas:

¹ The century of the aeroplane deserves its music.

² Máquinas colocadas em espaços públicos como shoppings, estabelecimentos comerciais etc, que continham games para serem jogados a partir da inserção de uma moeda pelo consumidor.

³ Circuitos integrados dedicados a um determinado processamento


Referências

COLLINS, Karen. Game sound : an introduction to the history, theory and practice of video game music and sound design / Karen Collins. Massachusetts Institute of Technology. MIT Press. Cambridge, 2008.

GRIFFITHS, Paul. Modern Music: a concise history. Revised edition. World of Art. Thames and Hudson. New York, 1994.

MOORER, James A. Signal Processing Aspects of Computer Music – A Survey. Computer Music Journal, Vol. 1, No. 1, pp. 4- 37. The MIT Press, 1977.

ROVERAN, Luiz Fernando Valente. Música e adaptabilidade no videogame: procedimentos composicionais de música dinâmica para a trilha musical de jogos digitais. Dissertação de Mestrado - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes. Campinas, 2017. 

SCHAEFFER, Pierre. Treatise on Musical Objects: An Essay across Disciplines. Translated by Christine North and John Dack. University of California Press. Oakland, California, 2017

SANTAELLA, Lucia. Matrizes da linguagem e pensamento: sonora visual verbal: aplicações

na hipermídia / Lucia Santaella - 3. Ed. - São Paulo: 5. Reimp., 2019a - Iluminuras: FAPESP, 2019a.

SANTAELLA, Lucia. Estética & Semiótica/Lucia Santaella. Curitiba: InterSaberes, 2019b. (Série Excelência em jornalismo)

WESKE, J. Digital Sound and Music in Computer Games. Chemnitz, 2000. Artigo online publicado em 2000 para o projeto Neue Medien im Alltag da Technische Universität de Chemnitz. Disponível em http://3daudio.info/gamesound/index.html. Acessado em: 13 mai. 2022.


Como referenciar este artigo:

YGLESIAS, Vinicius. A música eletroacústica e o áudio para games: irmãos separados no nascimento?. Blog C4, Campinas: Nics; UNICAMP, 13 mai, 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em:
https://unicampc4.blogspot.com/2022/05/a-musica-eletroacustica-e-o-audio-para.html