Sobre a classificação de jogos - parte 2

José Fornari (Tuti) - fornari@unicamp.br

Blog C4 - 24 de junho de 2022


  No artigo anterior, falei sobre a classificação de jogos seguindo um viés similar à classificação musical, em categorias de gêneros. A classificação categórica, seja esta para jogos ou música, de fato ajuda a organizar rapidamente a produção e até a identificar correlações intervenientes das características socioculturais, tanto das comunidades dos usuários de jogos quanto dos ouvintes de música. Porém, não auxiliam no entendimento mais aprofundado das propriedades intrínsecas que os compõem ou identificam, tanto na esfera individual quanto na comunitária.

    A definição de um gênero de jogo baseando-se na sua estrutura processual (por exemplo, se é mecânico ou eletrônico, real ou virtual), a meu ver, fornece uma classificação útil para seu desenvolvimento, mas não para a sua pesquisa acadêmica em relação ao porquê dos diferentes gêneros de jogos terem se formado. Por exemplo, o xadrez pode ter versões com estrutura processual bastante distinta, desde o jogo tradicional de tabuleiro até a sua versão computacional, que pode ser jogada entre dois humanos ou contra o computador. Porém, todas as versões do xadrez ainda constituem o mesmo gênero de jogo (Strategy, conforme definição apresentada no artigo anterior), algo, a meu ver, similar às variações de orquestração de uma mesma peça musical.



    A possibilidade de classificação de gêneros de jogos em relação à estrutura processual, para mim tem relação direta com o tipo de gerenciamento de dados. Todo jogo lida com dados, sejam estes discretos ou analógicos. Por esse viés, um jogo pode ser entendido como um sistema de tratamento de dados multimodais, conforme definido em Martin (2022), constituído por três estágios: Análise (aquisição de dados), Processamento (regras do jogo) e Síntese (saída de dados). Segue abaixo um esboço inicial desta classificação:


1) Aquisição de dados (input)

    1.1) mecânica (gestos controlando diretamente o jogo)

    1.2) transdutiva (com transdução de dados entre diferentes meios)        

     1.2.1) eletromecânica (ex.: joysticks, mouse, teclado, acelerômetros, giroscópio, GPS etc.)

     1.2.2) eletroacústica (ex.: microfone)

     1.2.3) eletromagnética (ex.: câmera) 

2) Processamento de dados (regras do jogo)

    2.1) mecânico (jogos de tabuleiro)

    2.2) elétrico

     2.2.1) eletromecânicos

     2.2.2) eletrônicos

        2.2.2.1) analógicos (ex.: telejogo

        2.2.2.2) digitais (ex.: videogames atuais) 

3) Síntese de dados (output)

    3.1) real (diretamente captada pelos sentidos)

    3.2) virtual (por meio de alto-falantes, monitores, óculos VR etc.)


 

Figure 1: Some steps in the analysis and synthesis of multimodal behavior.

Imagem extraída de Martin (2022).


Em termos de jogabilidade, um possível esboço classificatório de gêneros de jogos seria:
1) Jogabilidade analógica (tratamento de dados contínuos), com decisões perceptualmente contínuas (ex.: simuladores, FPS etc.).

2) Jogabilidade digital (tratamento de dados discretos), com decisões discretas, mutuamente exclusivas, onde não há meio termo ou fragmentação decisória (ou é um estado, ou é outro) (ex.: xadrez, tetris, RPGs etc.).


No entanto, para fins de estudo sobre a natureza e a necessidade humana por jogar jogos, a classificação acima, a meu ver, pouco contribui. Voltando assim à classificação categórica de gêneros de jogos mencionada no artigo anterior, uma possibilidade então seria investigar a sua fragmentação categórica em dimensões ortogonais, como no caso do modelo circumplexo de Russell (1980), utilizado na classificação de estados emocionais, no qual as categorias de afeto são (aproximadamente) dispostas sobre um plano cartesiano contendo duas dimensões: valence (a meu ver, no caso de emoção musical, esta vai do "triste" ao "alegre" uma vez que não existe emoção negativa evocada por música) e arousal (do "relaxado" ao "intenso").


Figura 2: Candra, Henry & Yuwono, Mitchell & Handojoseno, Ardi & Chai, Rifai & Su, Steven & Nguyen, Hung. (2015). Recognizing emotions from EEG subbands using wavelet analysis. 2015. 10.1109/EMBC.2015.7319766. https://www.researchgate.net/publication/283991280_Recognizing_emotions_from_EEG_subbands_using_wavelet_analysi

    Este modelo foi extensivamente utilizado para a classificação bidimensional de emoções avaliadas e evocadas pela apreciação musical. Dada a inefabilidade (e portanto, afetividade evocada) tanto escutando música quanto jogando jogos, creio que utilizar um modelo circumplexo de afeto para a classificação de gêneros de jogos possa de fato trazer alguma contribuição para o estudo acadêmico e sistemático da sua natureza e assim da sua ação afetiva, que a imensa maioria das pessoas tem por jogar jogos, cujo imperativo emotivo, na minha opinião, se resume a duas palavras: "simulação segura".

 

 


    Neste contexto, termino este artigo com a minha audaciosa sugestão para um possível modelo bidimensional de classificação de gêneros de jogos, que pode ser dado por duas sensações independentes (ou constatações perceptualmente imediatas, no sentido de ocorrerem antes de uma avaliação consciente, mediada pela cognição). Estas seriam: 1) a "sensação de segurança" durante o jogo (no lugar de arousal) e 2) a "sensação de realidade" dada pela simulação do jogo (no lugar de valência).


Sugestão de modelo circumplexo para uma possível classificação bidimensional de gêneros de jogos (elaborado pelo autor)


Referências bibliográficas

Martin, Jean-Claude. (2022). Analysis and synthesis of cooperation between modalities. 

Russell, James A. "A circumplex model of affect." Journal of personality and social psychology 39.6 (1980): 1161.