A diegese sonora nas mídias audiovisuais - parte 2

Vinicius Yglesias

viniciusyglesias.musico@gmail.com

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Na primeira parte deste artigo, foram introduzidos os conceitos de som diegético e extradiegético da maneira que foram cunhados na teoria do cinema, de acordo com as definições de Bordwell e Thompson (2013). Vimos que o som diegético é aquele cuja fonte aparenta estar presente no mundo virtual do qual ela faz parte, como diálogos, sons de passos, sons naturais como vento e chuva, tiros ou explosões, enquanto o som extradiegético é qualquer som cuja fonte não existe dentro do mundo fictício que ele integra, como as músicas épicas tocadas por orquestra e coro no meio de grandes batalhas em filmes de super-herois ou de guerra, e os efeitos sonoros no menu inicial dos games. No artigo de hoje veremos algumas classificações específicas cunhadas para os games que acredito expandir de maneira interessante o debate sobre o tema.


Menu inicial do game God of War II, game de guerra com intenso uso de orquestra e coro em sua trilha musical1


Conforme podemos observar em Curtiss (1994), mesmo na teoria do cinema essas duas definições já se mostravam no mínimo insuficientes para descrever a complexidade que o som pode vir a ter em mídias audiovisuais, quando a autora, ao invés dos termos “diegético” e "extradiegético", divide o papel do som em “indicial”2, “icônico”3, ou “isomórfico”4. E, conforme Grimshaw (2007), no caso dos games, que tem a interatividade como uma característica própria (PASSOS; FORNARI, 2021), essa terminologia se mostra ainda mais insuficiente.

Uma das terminologias sugeridas para abarcar o comportamento do áudio de games vem da tese de Kristine Jørgensen (2007), na qual a autora soma aos conceitos previamente descritos o conceito de som “transdiegético”, que por sua vez pode ser dividido em duas categorias. A primeira delas é o som “transdiegético externo”, que trata-se de sons que, apesar de serem extradiegéticos, influenciam diretamente o mundo do game. O exemplo com o qual finalizei o artigo anterior, sobre games do gênero de terror, é um dos casos mais frequentes em que esse comportamento pode ser observado. É muito comum, em games do gênero, que o jogador não possa sequer se aproximar de um inimigo que o persiga, pois esse contato resultaria na "morte" do protagonista, restando à comunicação sonora o papel de “avisar” ao jogador que há um inimigo próximo.

Porém, em muitos games do gênero, como Friday the 13th5 ou Dead by Daylight6, essa comunicação ocorre por meio da música extradiegética do game, pois, enquanto o ambiente está seguro, tudo que se escuta é a paisagem sonora diegética do mundo do game ou uma música relativamente mais tranquila, em comparação com o aumento de dinâmica e a aceleração da música alertando o jogador que o inimigo se aproxima, fazendo-o fugir ou se esconder.





Do ponto de vista dos personagens controlado pelo jogador, não haveria motivo para fuga, já que nenhuma orquestra aparece no cenário do game para alertá-lo da aproximação do inimigo. Mas do ponto de vista do jogador, a música está alertando um perigo iminente, causando mudanças no mundo do game. Assim, por meio da ação do jogador, a música extradiegética está afetando o espaço diegético, atravessando da sua origem externa ao mundo do game para influenciar o ambiente interno deste mundo.

A segunda categoria descrita por Jørgensen é o som “transdiegético interno”, que se refere a sons diegéticos que se comunicam diretamente com o jogador de alguma maneira, e não com um personagem do game. Essa categoria é muito comum em diálogos, e um dos exemplos mais frequentes dessa forma de comunicação é popularmente conhecido como “quebra da quarta parede”7, elemento amplamente utilizado como recurso humorístico em séries como The Office ou Wandavision, mas que também aparece em diversos games, como Metal Gear Solid e Deadpool, também como recurso humorístico, mas pode também aparecer como recurso de tensão em games de suspense ou terror.



A quebra da quarta parede acontece quando um personagem da série ou game reconhece a presença do espectador, comunicando-se diretamente com ele ao invés de se dirigir a outro personagem do game.



A diferença dessa quebra da quarta parede nos games em relação a séries, é que enquanto nas séries a história vai seguir sempre da mesma maneira, independente do que o espectador faça (a menos que ele simplesmente desligue o aparelho), nos games essa quebra tem o poder de modificar os acontecimentos futuros, pois exige do jogador alguma ação em relação ao que foi comunicado.

Em Overwatch8, por exemplo, ainda que os personagens compartilhem o mesmo espaço físico, as falas são direcionadas ao jogador, visto que são plenamente audíveis, mesmo que a distância física e os sons de tiros e explosões impossibilitem a escuta. E, como mencionado anteriormente, essas falas influenciam diretamente a ação do jogador, por exemplo quando um personagem diz “Eu preciso de cura” (I need healing) ou “Agrupem-se comigo” (Group up with me), tratando-se portanto de um som diegético que influencia diretamente as escolhas do jogador no espaço extradiegético.9




Esta categorização de diegético, extradiegético e transdiegético (interno e externo) é apenas uma das possibilidades encontradas na bibliografia sobre este amplo e complexo tema. Além dos autores já citados ao longo do artigo, maior aprofundamento e outros tipos de categorização podem ser encontrados em Genette (1982), Gorbman (1987), Shum (20008), Meneguette (2016), Kamp, Summers e Sweeney (2016) e Camargo (2018).



Notas:

1 Imagem extraída de <https://www.youtube.com/watch?v=IpKLwIIdvuk>. Acesso em: 05 jul. 2022.

2 Quando o som escutado foi causado pelo objeto presente visualmente na cena, caso raro nos filmes atuais, exceto em diálogos, e inexistente nos games, visto que em um game os sons necessariamente sempre são implementados após terem sido gravados.

3 Quando o som escutado possui uma relação análoga com o objeto visto, mas não foi causado diretamente por ele, como acontece nos games e, nos dias atuais, na maior parte dos filmes, com exceção dos diálogos.

4 Também conhecido como mickey-mousing, quando o som escutado está em sincronia com os movimentos de um personagem na tela.

5 Disponível em: <https://store.steampowered.com/app/438740/Friday_the_13th_The_Game/>. Acesso em: 14 jun. 2022.

6 Dsponível em: <https://store.steampowered.com/app/381210/Dead_by_Daylight/>. Acesso em: 14 jun. 2022.

7 A “quarta parede” é um conceito geralmente atribuído ao filósofo Denis Diderot (CUDDON, 2013), que se refere à fronteira entre o mundo real e o mundo fictício da narrativa mencionada em artigo anterior aqui no Blog do C4 (cf. YGLESIAS, 2022).

8 Disponível em: <https://playoverwatch.com/pt-br/>. Acesso em: 14 jun. 2022. 

9 Por ser um game multiplayer, jogado com duas equipes de 6 pessoas cada, é mais comum que os jogadores se comuniquem por meio de algum aplicativo que permite chamada de voz, como o Discord. Entretanto, as opções de falas mencionadas sempre estão disponíveis caso essa comunicação não seja possível externamente.



Referências

BORDWELL, David. THOMPSON, Kristin. A arte do cinema: Uma introdução. Campinas/São Paulo: Editora Unicamp/Edusp, 2013, 768 pp.

CAMARGO, Fernando Emboaba de. Interatividade e Narratividade sonora nos games. Universidade Estadual de Campinas, 2018. Área de concentração em Música: Criação, Teoria e Prática. Instituto de Artes. Campinas, 2018. 188p.

CURTISS, S. (1992). The sound of early Warner Bros. cartoons. In R. Altman (Ed.), Sound Theory Sound Practice (pp. 191—203). New York: Routledge.

GENETTE, Gérard. Figures of Literary Discourse. [Livro] Tradução Alan Sheridan. New

York: Columbia University Press, 1982.

GORBMAN, Claudia. Unheard Melodies: narrative film music. [Livro] Londres: The

British Film Institute, 1987.

GRIMSHAW, Mark. The acoustic ecology of the First-Person Shooter. Tese de Doutorado. University of Bolton, 2007. School of Games Computing and Creative Technologies, 2007. 382p.

JØRGENSEN, Kristine. ‘What are Those Grunts and Growls Over There?’ Computer Game Audio and Player Action. Tese de Doutorado. Copenhagen University, 2007. Section of Film and Media Studies. Department of Media, Cognition and Communication, 2007. 204p.

KAMP, Michiel; SUMMERS, Tim; SWEENEY, Mark. Ludomusicology: Approaches to Video Game Music. Equinox Publishing Ltd. Sheffield, UK Bristol, CT, 2016.

MENEGUETTE, Lucas Correia. A afinação do mundo virtual: identidade sonora em jogos digitais. Tese de Doutorado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2016. Área de concentração em Tecnologias da Inteligência e Design Digital. São Paulo, 2016. 234p.

PASSOS, L. J. P.; FORNARI NOVO JUNIOR, J. E. Música, linguagem e videogames: um estudo sonológico sobre suas contribuições, correlações e confluências. ARJ – Art Research Journal: Revista de Pesquisa em Artes, [S. l.], v. 8, n. 1, 2021. DOI: 10.36025/arj.v8i1.24464. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/artresearchjournal/article/view/24464. Acesso em: 14 jun. 2022.

SHUM, Lawrence Rocha. Topologia(s) Sonora(s) nos Games. Tese de Doutorado.. Pontíficia Universidade Católica de São Paulo, 2008. Área de concentração em Comunicação e Semiótica. São Paulo, 2008. 243p.

YGLESIAS, Vinicius. A diegese sonora nas mídias audiovisuais - parte 1. Blog C4, Campinas: Nics; Unicamp, 10 jun 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em: https://unicampc4.blogspot.com/2022/06/a-diegese-sonora-nas-midias.html



Como referenciar este artigo:

YGLESIAS, Vinicius. A diegese sonora nas mídias audiovisuais - parte 2. Blog C4, Campinas: Nics; Unicamp, 08 jul. 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em: https://unicampc4.blogspot.com/2022/07/a-diegese-sonora-nas-midias.html