A diegese sonora nas mídias audiovisuais - parte 1

Vinicius Yglesias

viniciusyglesias.musico@gmail.com

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Nos textos anteriores que escrevi aqui para o Blog C4, sobre a brincadeira de esconde-esconde em Outer Wilds¹ e sobre a relação da música eletroacústica com o áudio para games², mencionei, de maneira rápida, os conceitos de som diegético e extradiegético (JØRGENSEN, 2007; GRIMSHAW, 2007). Esses conceitos surgiram na teoria do cinema, como pode ser visto em Bordwell e Thompson (2013), e são aplicados também aos games, por vezes de maneira semelhante, noutras, de maneira bem diferente. Neste artigo irei tratar com mais detalhes a origem e o significado desses conceitos, e a partir dessa fundamentação, irei abordar, em uma segunda parte, suas ramificações e particularidades quando aplicados em games.


Capa da segunda edição do livro The Foley Grail, de Vanessa Theme Ament, publicado em 2014, que trata da história da produção de efeitos sonoros para mídias audiovisuais, prática nomeada de foley, em homenagem a Jack Foley (AMENT, 2008).



Conforme definido por Bordwell e Thompson (2013), a noção de diegese pressupõe do espectador (ou aqui, do jogador) o entendimento das convenções envolvidas na fruição de uma narrativa audiovisual. Ao assistirmos um filme com um “narrador onisciente”, por exemplo, compreendemos que ele não é um personagem do filme, mas um elemento externo à narrativa, que existe para se comunicar apenas com o espectador. Ou seja, há o entendimento, por parte do espectador, de que existe uma fronteira que separa os acontecimentos do mundo da história dos acontecimentos do mundo real (GRIMSHAW, 2007). No teatro, essa fronteira é uma divisão imaginária entre o palco e a plateia, enquanto em mídias audiovisuais, como filmes e games, essa fronteira é uma divisão física concreta, representada por um “black mirror”³ (espelho negro), ou seja, pela tela do aparelho que está reproduzindo a mídia, seja ele uma televisão, uma tela de computador ou mesmo um celular.

E é aí que entra a diferença entre sons diegéticos e extradiegéticos. Considerando a divisão entre o mundo fictício de uma narrativa e o mundo real, chamamos de diegético todo som cuja fonte supostamente está presente no mundo fictício onde ela acontece. Digo “supostamente” porque não é necessário que essa fonte apareça visualmente na tela ou sequer é necessário que ela exista fisicamente para  que seu significado possa ser compreendido, visto que o som diegético por si só consegue descrever o espaço físico no qual a narrativa acontece. Borwell e Thompson (2013) chamam essa maneira de utilizar o som no cinema de “som off”, ou seja, o uso de um som cuja fonte não está presente.4

Um exemplo de utilização de som diegético se encontra em Hearthstone: heroes of Warcraft, um game de cartas. Tanto sua estética visual quanto sua paisagem sonora diegética buscam simular o ambiente de uma taverna medieval (CAMARGO, 2018). O som tem um papel fundamental nesse game, visto que grande parte dessa ambientação é construída por meio da música e dos sons de vozes ao fundo que ocorrem durante o game, mimetizando o dinamismo sonoro que existiria no ambiente real de uma taverna medieval (ou ao menos no que temos como estereótipo de como seria esse ambiente).

Note-se que não é necessário que a fonte do som escutado na mídia seja a mesma fonte que produziria aquele som no mundo real. Para o som de passos na neve, por exemplo, é comum que seja utilizado o som de amido de milho ao invés de neve, pois, de acordo com Chion (2003), soa melhor em um contexto de gravação do que a neve real. No caso de games violentos, como os de temática de apocalipse zumbi, com muitos sons de carne cortada ou esmagada, sons de brócolis quebrados ou melancias trituradas são técnicas comuns para a representação desse tipo de sonoridade (MENEGUETTE, 2016).



Já o som extradiegético se refere a sons que existem apenas para o espectador/jogador, mas não para os personagens. A voz do narrador onisciente citado anteriormente pode ser considerada como um tipo de som extradiegético. Outro exemplo comum são as trilhas sonoras dos games, nas quais é comum que as músicas existam apenas para o jogador. Esse uso de música extradiegética existe desde Space Invaders, lançado em 1978, até os games mais recentes, como Elden Ring, lançado em fevereiro de 2022.


Cena do game Space Invaders.5


Cena do game Elden Ring.6

Ainda que seja o caso mais comum, nem sempre uma trilha sonora é extradiegética. Em todos os sete games da saga Yakuza, por exemplo, é possível frequentar um karaokê onde podemos escolher uma música para cantar, e durante a performance, interagimos com o personagem apertando botões específicos que aparecem na tela. No quinto game da saga, também há ocasiões de dança, que também são acompanhadas de música diegética. Também é válido mencionar os games musicais, como a franquia Guitar Hero7 (e sua versão online, Guitar Flash)8 e o game Taiko no Tatsujin9, nos quais tocar as músicas é o objetivo principal.





Mas qual seria a classificação da diegese do som em games de terror, em que uma música extradiegética influencia diretamente a narrativa do game, quando, ao escutarmos o leitmotiv de um vilão, por exemplo, fugimos ou nos escondemos, fazendo o protagonista tomar uma atitude inesperada dentro do mundo do game, já que ele não poderia ter ouvido essa música? Esse e outros casos particulares da utilização de sons nos games serão tema da parte 2 deste artigo.



Notas:

¹ Disponível em: <https://unicampc4.blogspot.com/2022/04/a-intima-ligacao-entre-musica-jogo-e.html> Acesso em: 8 jun. 2022.
²
Disponível em: <https://unicampc4.blogspot.com/2022/05/a-musica-eletroacustica-e-o-audio-para.html> Acesso em: 8 jun. 2022.
³
 Charlie Brooker, criador da série Black Mirror, explica que o título surgiu a partir da percepção de que, quando as telas dos aparelhos que utilizamos estão desligadas: “(...) se você olhar para elas, parece um espelho negro, e há algo de frio e assustador sobre isso”. Daí a utilização do termo no presente artigo para se referir às telas de televisão, computadores e celulares nas quais jogamos os games. Disponível em: <https://www.highsnobiety.com/p/black-mirror-title-meaning/> Acesso em: 8 jun. 2022.
 Outros termos que podem ser encontrados referente à mesma maneira de utilização do som são “acusmático” (CHION, 2003; PASSOS; FORNARI, 2020) e “atópico” (CAMARGO, 2018)
 O game pode ser jogado online em <https://freeinvaders.org/>. Acesso em: 8 jun. 2022.
 <https://store.steampowered.com/app/1245620/ELDEN_RING/>. Acesso em: 8 jun. 2022.
 <https://guitarhero.fandom.com/wiki/Guitar_Hero:_Warriors_of_Rock>. Acesso em: 8 jun. 2022.
 <https://guitarflash.com/?lg=pt>. Acesso em: 8 jun. 2022.
Saga popular principalmente no Japão, cuja versão online pode ser encontrada em: <https://taiko.bui.pm/>. Acesso em: 8 jun. 2022.


Referências

AMENT, Vanessa Theme. The Foley Grail: The Art of Performing Sound for Film, Games, and Animation. 2ª Edição. Focal Press. Burlington, 2014.

BORDWELL, David. THOMPSON, Kristin. A arte do cinema: Uma introdução. Campinas/São Paulo: Editora Unicamp/Edusp, 2013, 768 pp.

CAMARGO, Fernando Emboaba de. Interatividade e Narratividade sonora nos games. Universidade Estadual de Campinas, 2018. Área de concentração em Música: Criação, Teoria e Prática. Instituto de Artes. Campinas, 2018

CHION, Michel. Audio-Vision: Sound on Screen. New York: Columbia University Press, 1994.

GRIMSHAW, Mark. The acoustic ecology of the First-Person Shooter. Tese de Doutorado. University of Bolton, 2007. School of Games Computing and Creative Technologies, 2007. 382p.

JØRGENSEN, Kristine. ‘What are Those Grunts and Growls Over There?’ Computer Game Audio and Player Action. Tese de Doutorado. Copenhagen University, 2007. Section of Film and Media Studies. Department of Media, Cognition and Communication, 2007. 204p.

McGARRIGLE, Lia. Here’s what the title of “Black Mirror” really means. Disponível em: <https://www.highsnobiety.com/p/black-mirror-title-meaning/> 

MENEGUETTE, Lucas Correia. A afinação do mundo virtual: identidade sonora em jogos digitais. Tese de Doutorado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2016. Área de concentração em Tecnologias da Inteligência e Design Digital. São Paulo, 2016. 234p.

PASSOS, Leonardo J. Porto; NOVO JR, José E. Fornari. A sonologia do desenvolvimento de um audiogame acusmático e suas aplicações na pesquisa em música e linguagem. XIII Encontro de Educação Musical da Unicamp, 2020.

YGLESIAS, Vinicius. A música eletroacústica e o áudio para games: irmãos separados no nascimento?. Blog C4, Campinas: Nics; UNICAMP, 13 mai, 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em: <https://unicampc4.blogspot.com/2022/05/a-musica-eletroacustica-e-o-audio-para.html>

YGLESIAS, Vinicius. A íntima ligação entre música, jogo e cultura. Blog C4, Campinas: Nics; UNICAMP, 15 abr. 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em: <https://unicampc4.blogspot.com/2022/04/a-intima-ligacao-entre-musica-jogo-e.html

  

Como referenciar este artigo:

YGLESIAS, Vinicius. A diegese sonora nas mídias audiovisuais - parte 1. Blog C4, Campinas: Nics; Unicamp, 10 jun 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em: https://unicampc4.blogspot.com/2022/06/a-diegese-sonora-nas-midias.html