Emoções evocadas por sons em games: mostrar é melhor do que explicar - parte 3

Leonardo Porto Passos

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Na segunda parte deste artigo, que pode ser acessada aqui, foi apresentado o conceito de sinais e pistas etológicos de David Huron (2012, 2015a, 2015b). Esta terceira e última parte traz continuidade ao assunto, além de apresentar novos conceitos do autor.

Mas afinal… De que forma o conceito de sinais e pistas etológicos sonoros pode contribuir para a trilha sonora de um game? Bem, um sinal etológico precisa ser compreensível mesmo entre espécies diferentes. O chocalho da cascavel é compreendido como um sinal de ameaça pelas mais variadas espécies, e não somente pelas cascavéis (ou por nós humanos). E a observação dos animais – incluindo os humanos – explicita alguns sinais que são, digamos, “universais”, ou seja, compreendidos por diversas espécies e por humanos de culturas distintas. Na natureza, em geral, sons agudos estão associados ao medo, afinidade ou submissão (como o ganido de um cão), enquanto os sons graves estão associados à ameaça ou agressão (como o rosnado de um cão). O mesmo princípio pode ser observado na fala humana: o tom alto em baixa intensidade está associado à amizade ou deferência, enquanto o tom baixo em alta intensidade está associado à seriedade ou agressão. Novamente, a mesma relação é observada na música, pois melodias em tons mais baixos geralmente são percebidas como menos polidas/gentis e submissas/dóceis e mais ameaçadoras. Isso tudo pode ser muito bem aproveitado na criação de efeitos sonoros, pois ficará mais claro para o designer de som quando um som é uma mensagem (sinal) ou uma sugestão não intencional (pista), o que pode deixar o áudio de um game muito mais verossímil e criativo, inclusive no que diz respeito à mencionada técnica do show, don’t tell, já que os sinais e pistas ajudarão a entender o funcionamento do fornecimento de informações, em uma relação mais harmoniosa entre som e imagem, sem que haja redundâncias. Um vilão, por exemplo, pode ser extremamente ameaçador sem que, para isso, tenha que recorrer a explicações artificiais como as que eram comuns na série televisiva Batman e Robin (1966-1968, com Adam West e Burt Ward como os personagens principais), em que era comum os vilões explicarem para os heróis o seu plano ardiloso, dando a chance para que escapassem; ou ainda as explicações redundantes em desenhos animados antigos, a exemplo de um episódio de Superamigos (Hanna-Barbera, 1973-1985), no qual Jayna – irmã de Zan, dupla conhecida como os Supergêmeos – se transforma em um rato, salva Batman e Robin de uma armadilha e é “guardada” no Cinto de Utilidades do Homem-Morcego, momento em que o herói anuncia: “Vou guardá-la em meu batcompartimento de ratos”. Fato é que exageros e artificialismos como esses devem ser evitados, e certas informações podem ocorrer de maneira mais sutil – e, por que não, até mesmo mais sofisticada –, somente por meio do som, quando um personagem se aproxima, por exemplo, de uma região cheia de inimigos, ou seja, uma pista etológica; ou por meio de som e imagem, um sinal etológico, que dispensa demais explicações por ser uma mensagem autocontida, autorreferenciada.

Em outro exemplo, observa-se que uma fala triste (sad) normalmente é mais lenta, monótona e murmurada, com tom mais grave e timbre sombrio. Já uma vocalização de luto / pesar / sofrimento (grief) costuma ser mais aguda, com faringealização, fonação ingressiva e, em especial, a voz “quebrada” (“breaking” voice), causada por uma transição abrupta entre o falsete e a fonação modal, comum em muitos estilos musicais, como a ópera ocidental e o country, geralmente relacionadas a conteúdos de sofrimento nas letras. A tristeza é unimodal e mais contida, portanto, uma pista; já o sofrimento é multimodal e mais evidente, ou seja, um sinal, que busca evocar sentimento de compaixão e ternura.

Tristeza, à esquerda, e sofrimento, à direita.

Certos sons geralmente emitidos por uma pequena cavidade ressonante ativada por uma baixa quantidade de energia, como brinquedos de borracha e apito (squeeze ou squeak toys), ocarina, flauta doce sopranino ou caixa de música, são considerados “fofos” e remetem a algo frágil, delicado, inocente e vulnerável, e costumam suscitar atitudes carinhosas e protetoras, ou seja, respostas consistentes com a evocação de comportamentos parentais apropriados para a interação com bebês. Músicas rápidas são propensas a induzir estados de sentimentos lânguidos, já músicas rápidas evocam sentimentos exuberantes. Medo e nervosismo costumam ser evidentes na voz trêmula, com modulação distinta do tom. Na música, é comum o uso do vibrato tanto na voz quanto nos instrumentos, para deixar a composição mais expressiva.Sentimentos evocados pela observação de um sinal tendem a ser estereotipados, o que pode ser uma ferramenta bastante útil na composição de músicas com objetivo de induzir emoções nos ouvintes, já que fornece uma estratégia útil para discernir os aspectos da expressão musical que são compartilhados entre culturas.

Huron (2012, 2015b) ainda propõe o Acoustic Ethological Model (AEM), ou Modelo Etológico Acústico, que identifica quatro condições acústicas com propensão a evocar emoções específicas:

  1. Tom (pitch) agudo e alta intensidade: alerta, medo ou energia;
  2. Tom agudo e baixa intensidade: apaziguamento ou amizade;
  3. Tom grave e alta intensidade: agressão ou seriedade;
  4. Tom grave e baixa intensidade: tristeza, sonolência e relaxamento.

E o autor não para por aí. Huron (2012, 2015b) ainda se atém a uma questão central no afeto relacionado à música: como ela pode levar ouvintes a experimentar alguma emoção por meio da indução de afeto? Huron elenca quatro mecanismos como possíveis “fontes de emoções” (sources of emotion), que não são excludentes e podem operar simultaneamente:

  • Associação: sons ou padrões sonoros podem ser associados a experiências emocionais passadas, e essas associações podem ser totalmente arbitrárias, como no caso em que uma música feliz é tida como infeliz por um ouvinte que a associa com o término de um relacionamento amoroso.

  • Empático: o ouvinte reconhece características acústicas associadas a emoções particulares. Neurônios-espelho podem induzir à experimentação vicária de sentimentos semelhantes aos que estão sendo exibidos, como um ouvinte que se sente triste ao ouvir características acústicas associadas à tristeza.

  • Cognitivo: pensamentos conscientes que levam o ouvinte a uma experiência particular, como se lembrar da opinião de um biógrafo que diz que uma música representa agressão física e sentir desconforto ao ouvi-la.

  • Sinalização: seu propósito é mudar o comportamento do observador. Por exemplo, ao presenciar a exibição de submissão de um indivíduo, o animal agressor para de se comportar de forma agressiva.

Ainda que não sejam fórmulas exatas, com respostas certeiras – já que não se trata de estímulo-resposta, como bater o martelinho no joelho, e sim uma mescla de processo de enculturação e genética –, todos os conceitos e teorias trazidas no presente artigo são ferramentas poderosas para compositores e designers de sons, pois além de possibilitarem o uso mais criativo, verossímil e imersivo de efeitos sonoros e músicas em um game, ainda contribuem para evocar emoções de forma mais assertiva, tornando mais rica a experiência narrativa e contribuindo para tornar o game design mais significativo.

E como isso encerramos a séries de artigos sobre evocação de emoções em games por meio dos sons. No próximo artigo, vou trazer um novo assunto. Até lá.


Emoções evocadas por sons em games: mostrar é melhor do que explicar - parte 1

Emoções evocadas por sons em games: mostrar é melhor do que explicar - parte 2


Referências:

HURON, David. Affect induction through musical sounds: an ethological perspective. Phil. Trans. R. Soc. B, London: The Royal Society, v.  370, n. 1664, Mar. 2015a. DOI: <http://dx.doi.org/10.1098/rstb.2014.0098>.

HURON, David. Cues and signals: an ethological approach to music-related emotion. Signata [Online], n. 6, 2015b. DOI: <http://doi.org/10.4000/signata.1115>.

HURON, David. Sweet anticipation: music and the psychology of expectation. Cambridge (EUA): MIT Press, 2006.

HURON, David. Understanding music-related emotion: lessons from ethology. In: ICPMC, 12.; ESCOM, 8., 2012, Thessaloniki, Greece. Proceedings… CAMBOUROPOULOS, E.; TSOUGRAS, C.; MAVROMATIS, P.; PASTIADIS, K. (Editors), 2012, p. 473-481.


Como referenciar este artigo:

PASSOS, Leonardo Porto. Emoções evocadas por sons em games: mostrar é melhor do que explicar - parte 3. Blog C4, Campinas: Nics; Unicamp, 12 ago. 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em: <https://unicampc4.blogspot.com/2022/08/emocoes-evocadas-por-sons-em-games-3.html>.