A relação entre música e efeitos sonoros - parte 2

Vinicius Yglesias

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Na primeira parte deste artigo1, vimos algumas das definições de música utilizadas ao longo da história, desde a Grécia Antiga, quando se referia a diversas atividades, desde ginástica e teatro até poesia e dança (FUBINI, 2008), até a definição descrita por Schafer, que se refere a qualquer organização de sons com intenção de ser ouvido como música (SCHAFER, 2011). Uma das perguntas que surgem a partir dessa definição é de quem deve ser a intenção de ouvir determinado som como música ou não, se é de quem está produzindo esse som ou de quem o está escutando. Considerei, no artigo anterior, que essa intenção deve partir do compositor e, portanto, trarei abaixo algumas definições de efeitos sonoros para na terceira parte sugerir maneiras de interpretar qual teria sido essa intenção a partir do estudo dos sons de alguns games.

Diferentemente da música, que possui séculos de tratados abordando suas possíveis definições, o elemento do “efeito sonoro”, mesmo na bibliografia de algumas das maiores referências sobre o tema do som no cinema e nos games, como Gorbman (1987), Chion (1994) e Collins (2008), é tratado como algo tão óbvio e compreensível que sequer precisa de qualquer explicação, o que torna mais complicado encontrar definições diretas do termo.

Uma definição trazida por Viers (2008), encontrada no Random House Unabridged Dictionary, define efeito sonoro como “qualquer som, exceto música ou fala, artificialmente reproduzido para criar um efeito em uma apresentação dramática, como tempestades ou o ranger de uma porta” (Ibid, p. 23)2. Ao comparar essa definição de efeito sonoro com a de Schafer de música, é inevitável nos perguntarmos se, caso o mesmo som descrito fosse utilizado como parte de uma composição musical (como ocorria na musique concréte3, por exemplo), ele ainda seria algo diferente de música, como consta na definição acima.

Podemos identificar outra definição, de maneira mais indireta, a partir de uma citação de Gorbman (1987): “em um filme sonoro (...), a trilha sonora convive com outros fenômenos acústicos (diálogos, efeitos, música) cuja fonte aparentemente está localizada no espaço diegético4” (GORBMAN, 1987, p. 41). A partir da citação da autora, podemos extrair uma possibilidade de como reconhecer essa intenção. Caso o som esteja no espaço diegético da narrativa de uma história e não seja música ou diálogo, ele terá a intenção de ser utilizado como “efeito sonoro”. Mas será que essas definições se apresentam na prática?

Para o exemplo desse artigo vou comentar a cena de um filme que considero bastante ilustrativa. No filme “De Olhos Bem Fechados” (Eyes Wide Shut), de 1999, há uma cena de perseguição acompanhada pelo segundo movimento da “Musica Ricercata” de György Ligeti, uma peça para piano solo em andamento lento. Há uma longa pausa entre as frases melódicas da peça, que é preenchida por sonoridades diferentes; a princípio, o som de um carro passando na rua (aos 0’04” do vídeo abaixo), e em seguida, os passos do personagem em cena (aos 0’11” do mesmo vídeo).


De acordo com a definição de Gorbman (1987), a divisão entre “música”, representada pela peça de Ligeti no espaço extradiegético, e os “efeitos sonoros”, representados pelo carro e os passos, no espaço diegético, parece bem clara, porém a maneira que esses sons são organizados na cena, que segue com diversas relações similares entre a peça de Ligeti e os sons do espaço diegético, ressignificam a relação entre eles. Embora não seja possível afirmar que os sons dos passos e do carro são música nesse contexto, pois dependeria da definição de música utilizada, acredito que durante a escuta seja possível reconhecer (conscientemente ou não) uma intenção musical na maneira em que foram organizados em relação à obra de Ligeti.

Para pensar nessa relação a partir de alguns achados da Psicologia da Gestalt, cuja um dos princípios básicos é que um todo é algo maior do que a simples relação entre suas partes (MEYER, 1956; EHRENFELS, 1988; OLIVEIRA, 2010). Ou seja, ainda que isoladamente seria fácil classificar a peça de Ligeti como “música” e o carro e os passos como “efeitos sonoros”, o todo constituinte dessas partes, organizados de maneira a cobrirem o silêncio uns dos outros, cognitivamente pode ser interpretado como um evento sonoro singular com coerência própria, que não se encontra isoladamente nem na peça de Ligeti nem nos sons do carro e dos passos, fazendo a música nessa cena do filme auditivamente se assemelhar mais a uma espécie de arranjo da obra de Ligeti do que a uma simples união de elementos diferentes que poderiam ser claramente fragmentados entre “música” e “efeitos sonoros”.


Exemplo de lei da similaridade, uma das leis identificadas pela Psicologia da Gestalt. Fonte: Oliveira (2010)



Podemos entender melhor essa questão por meio da “lei da similaridade” identificada pela Psicologia da Gestalt (OLIVEIRA, 2010). Ainda que na figura acima, cada círculo seja uma figura única, que isoladamente seria percebida simplesmente como um único elemento branco com borda preta, ou totalmente preto, seu agrupamento a partir de características em comum faz com que seja criado um novo padrão da relação entre elas, o qual ao invés de círculos isolados, sejam enxergados como linhas brancas e pretas alternadas.

Por analogia, se pensarmos na música de Ligeti como os círculos brancos e os sons que surgem em seu silêncio como os círculos pretos (ou vice-versa), a maneira que esses sons foram ritmicamente organizados na cena cria na verdade um terceiro padrão que relaciona todos esses elementos sonoros, que por mais que possuam diferenças identificáveis, também apresentam uma coerência própria entre si que não consta em suas características individuais.

Vale ressaltar que essa interpretação depende principalmente do ouvinte e da bagagem musical e cultural que possui. Assim como sons de pássaros tem apenas função comunicacional para os mesmos, enquanto para nós humanos podem soar como música, diversos experimentos demonstram como o estudo formal de música pode influenciar a interpretação cognitiva de um fenômeno sonoro em relação a indivíduos sem esse estudo (HURON, 2006), e que, portanto, outras interpretações são sempre possíveis.

Portanto, na terceira e última parte desse tema, trarei exemplos práticos de como essa organização de música e efeitos sonoros ocorre em diferentes games, assim como alguns padrões e interpretações que acredito que podem ser identificados a partir deles.


Notas

¹ Disponível em: <https://unicampc4.blogspot.com/2022/08/a-relacao-entre-musica-e-efeitos.html>. Acesso em: 12 set. 2022.

2 any sound, other than music or speech, artificially reproduced to create an effect in a dramatic presentation, as the sound of a storm or a creaking door.

3 Movimento composicional surgido na França no Século XX, que consiste na utilização de gravações de sons ambientais como material musical, sejam sons naturais, como vento, sons de água, pássaros etc, sejam sons artificiais, como veículos, sons de indústrias, fábricas etc.

4 [...] music in the sound film (...) shares the soundtrack with other acoustic phenomena (dialogue, effects, music) whose ostensible source is located in the diegetic space.



Referências

CHION, Michel. Audio-Vision: Sound on Screen. New York: Columbia University Press, 1994.

COLLINS, Karen. Game sound : an introduction to the history, theory and practice of video game music and sound design / Karen Collins. Massachusetts Institute of Technology. MIT Press. Cambridge, 2008. 204p.

EHRENFELS, C. On gestalt qualities. In: SMITH, B. (Ed.). Foundations of Gestalt Theory. Munich: Philosophia Verlag, 1988. p. 82–117. Publicado originalmente em 1890.

GORBMAN, Claudia. Unheard Melodies: narrative film music. [Livro] Londres: The British Film Institute, 1987.

MEYER, L. B. Emotion and Meaning in Music. Chicago: Chicago University Press, 1956.

OLIVEIRA, Luis Felipe. A Emergência do Significado em Música. Tese de Doutorado. Universidade Estadual de Campinas. Área de concentração em Fundamentos Teóricos. Instituto de Artes. Campinas, 2010. 254p.

VIERS, Ric. Sound Effects Bible: How to Create and Record Hollywood Style Sound Effects. Michael Wiese Productions, 2008.


Como referenciar este artigo:

YGLESIAS, Vinicius. A relação entre música e efeitos sonoros - parte 2 Blog C4, Campinas: Nics; Unicamp, 16 set. 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em:

https://unicampc4.blogspot.com/2022/09/a-relacao-entre-musica-e-efeitos.html