No artigo anterior, apresentei o protótipo chamado Musically Deaf (MD), cujo objetivo era ser uma ferramenta de Tecnologia Assistiva (TA) para proporcionar acessibilidade no ensino musical de pessoas surdas em aulas remotas de música realizadas em ambientes virtuais (ARRUDA, 2021). Após a explicação do funcionamento desse protótipo, mencionei sobre o minicurso “Musicalmente Surdo”. No blog de hoje, falo sobre o surgimento desse minicurso, assim como suas propostas, objetivos e alguns resultados em uma das aplicações realizadas.
No início de 2020, o Órgão Mundial da Saúde (OMS) declarou a pandemia global do vírus SARS-CoV-2, o que fez com que as atividades educacionais presenciais migrassem para ambientes virtuais, com realização de aulas remotas. Nessa situação inédita, novos desafios surgiram para os campos da educação musical, principalmente, a educação musical inclusiva. Esse campo de estudo é orientado ao ensino musical e à inclusão de pessoas com diversas deficiências, sejam sensoriais (deficiência visual e deficiência auditiva), motoras ou intelectuais (RECHDAN; CHAMON, 2020). Nessa área de estudo existe uma ampla produção científica que usa recursos de Tecnologia Assistiva (TA) para promover a inclusão e o ensino musical para pessoas com deficiência. Inclusive, nos textos da série “A relação entre a música e a cultura surda”, apresentei algumas TAs destinadas ao ensino musical de surdos.
Por conta da migração das aulas presenciais para as aulas remotas, os estudantes surdos foram impossibilitados de desenvolver habilidades na percepção musical, principalmente porque algumas das práticas dos educadores era estimular que os estudantes percebessem as vibrações sonoras das músicas e dos instrumentos musicais por meio do tato. De acordo com Neary (2001), essa percepção é possível porque o córtex auditivo dos surdos1 se adapta e remodela para processar as informações recebidas pelo tato, que oferece benefícios cognitivos e afetivos para esses indivíduos, conforme relatado por ouvintes, músicos e apreciadores.
Figura 1 — Crianças surdas se emocionam ao 'sentir' os sons da Orquestra Sinfônica de Campinas.
Ao reconhecer os interesses musicais das pessoas surdas e a impossibilidade da percepção tátil dos instrumentos, surge o minicurso “Musicalmente Surdo”, cujo objetivo é propor práticas pedagógicas visando a acessibilidade e a educação musical de pessoas surdas em ambientes remotos com o auxílio de ferramentas de Tecnologia Assistiva Remota (neste caso, usamos o protótipo do MD), além de realizar uma composição coletiva entre participantes surdos e ouvintes remotamente localizados. Esse minicurso foi desenvolvido em colaboração com Gerson Abdala2, responsável pelas práticas pedagógicas usadas e por mim, sendo responsável pelo gerenciamento e funcionamento do MD (ABDALA e ARRUDA, 2021).
O título “Musicalmente Surdo” é a união entre a palavra “musicalmente” que significa “de modo musical; segundo as regras da música; que se refere ou está relacionado à música: melodia musicalmente perfeita” (MICHAELIS, 2015) e a palavra “Surdo” que faz referência à comunidade surda. A autora Haguiara-Cervellini (2003), em sua obra chamada “A musicalidade do surdo”, entende por “musicalidade” a possibilidade de as pessoas se conectarem com a música por meio do movimento do corpo ou da voz, do tocar, da percepção de um instrumento musical ou, ainda, da escuta musical atentiva. Dessa forma, a ideia do título foi a de expressar a musicalidade interna presente em pessoas surdas.
No segundo semestre de 2021, realizamos uma aplicação do minicurso no evento online Encontro de Educação Musical da Unicamp (EEMU). O minicurso foi estruturado em duas partes, com a realização de uma atividade em cada, conforme mostrado na Figura 2. No primeiro momento, além da interação entre os participantes surdos e ouvintes, auxiliados por uma intérprete de Libras (Língua Brasileira de Sinais)3, também convidamos a professora de dança e surda Viviane Geronymo Vinkauskas, para palestrar sobre suas vivências e experiências com a dança e a música, já que ela entende a percepção musical do surdo melhor do que nós, autores do minicurso (ouvintes), também permitiu que os demais participantes surdos vissem nela uma representatividade empática. Após a conversa sobre as experiências de Vinkauskas, explanamos sobre a tecnologia assistiva e a importância desses recursos para o ensino musical de pessoas surdas, apresentando os trabalhos desenvolvidos por Duarte (2017), Benites (2020) e Ortega (2015). Para concluir o primeiro momento do minicurso, realizamos uma introdução do MD.
Antes de usarmos o MD, foi proposto um treinamento rítmico com uma partitura alternativa, com a utilização dos materiais que solicitamos no momento da inscrição. Apelidamos esses materiais de “instrumentos domésticos”, por serem itens comuns presentes em qualquer casa. Os instrumentos domésticos escolhidos foram os mesmos que mencionei anteriormente para o uso da ferramenta MD (apresentado neste blog): garrafa PET (polietileno tereftalato), copo de plástico de requeijão e uma colher inteiramente de metal, além das mãos para bater as palmas. Com os instrumentos em mãos, o professor Gerson Abdala, realizou o treinamento usando uma partitura alternativa, composta por imagens dos materiais usados no minicurso, sendo atribuída uma cor a cada um. Dessa forma, a garrafa PET era pintada de vermelho, o copo de requeijão, de verde, as palmas, de azul, e as colheres de metal, de amarelo. Todas essas cores correspondiam às cores usadas na fabricação do MD, portanto, quando os participantes fossem usar a ferramenta, não haveria estranhamento.
Figura 2 – Estruturação do minicurso “Musicalmente Surdo”. Fonte: https://drive.google.com/file/d/1_k107VcbygUf4I63pk_XDSAfn1Ltgm-2
Após o aquecimento com a partitura alternativa, realizamos experimentações com todos os participantes usando os materiais do minicurso para introduzi-los aos conceitos de intensidade. Definimos quais pessoas usariam quais instrumentos, depois pedimos para que realizassem um ritmo definido por nós, instrutores. O ritmo usado foi o seguinte: quem estivesse com a garrafa PET deveria bater na mesa duas vezes, depois, quem estivesse com o copo de requeijão deveria bater uma vez quem está com o copo de requeijão, na sequência, duas palmas, finalizando com uma batida da colher de metal. Além desse, houve outros ritmos. Dessa forma, os participantes, em uma colaboração coletiva, realizaram os ritmos e receberam o feedback visual do MD, Assim qualquer participante, surdo ou ouvinte, podia se orientar e para saber o seu momento de realizar a batida. Após o uso do MD de maneira guiada por nós instrutores, deixamos com que todos criassem seus próprios ritmos e percutissem os instrumentos livremente, de forma espontânea. Abaixo, segue imagem de um dos momentos do minicurso “Musicalmente Surdo”:
Figura 3 — Participantes surdos e ouvintes do minicurso “Musicalmente Surdo” interagindo com o MD.
Fonte: Abdala; Arruda (2021).
Notas
1 O córtex auditivo é uma área localizada no lobo temporal do cérebro responsável pelos processos cognitivos das informações sonoras enviadas pelo órgão principal da audição, a orelha (GIL-LOYZAGA, 2016). No caso dos surdos, em que há uma deficiência no aparelho auditivo, o córtex auditivo sofre processos de readaptação (neuroplasticidade), e por meio de treinamentos, é possível que essas pessoas surdas consigam interpretar as vibrações do som com outros canais sensoriais, como o tato (LENT, 2004).
2 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Música (Teoria, Criação e Prática) no Instituto de Artes (IA) da Universidade de Campinas (Unicamp). Possui graduação em Música pela Universidade Estadual de Campinas (2017) e graduação em Mecânica de Precisão pelo Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza (2002). Tem experiência na área de Artes, com ênfase em Educação Artística.Link: http://lattes.cnpq.br/3423800898420991.
3 A lei nº 10.432/02, decretada em 24 de abril de 2002, reconheceu a Língua Brasileira de Sinais (Libras) como o meio de comunicação e expressão oficial para surdos (BRASIL, 2002).
Referências bibliográficas
ABDALA, G., ARRUDA, L. Musicalmente Surdo: uma experiência utilizando Tecnologia Assistiva remota para promover acessibilidade na educação musical de Surdos. In: ENCONTRO DO COLETIVO DE COMUNICAÇÃO, COGNIÇÃO E COMPUTAÇÃO C4, 2021, Campinas. 1º ENCONTRO DO COLETIVO DE COMUNICAÇÃO, COGNIÇÃO E COMPUTAÇÃO C4 2021, 2021.
ARRUDA, L. Uma proposta de Tecnologia Assistiva remota para educação musical de surdos utilizando o Pure Data. In: ENCONTRO DO COLETIVO DE COMUNICAÇÃO, COGNIÇÃO E COMPUTAÇÃO C4, 2021, Campinas. 1º ENCONTRO DO COLETIVO DE COMUNICAÇÃO, COGNIÇÃO E COMPUTAÇÃO C4 2021, 2021.
BENITES, Cristiano da Silva; SILVEIRA, Ismar Frango. Utilizando robótica para permitir a experiência musical de crianças surdas por meio da vibração: visão prática. Revista Ibérica de Sistemas e Tecnologias de Informação, Lousada/Portugal, v. 28, n. 28, p. 412-422, 2020.
BRASIL. Lei no 10.436 de 24 de abril de 2002. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da
Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm>. Acesso em: 28 ago 2021.
DUARTE, Erivan Gonçalves. Uma ferramenta para a educação musical dos surdos. 2017. 1 recurso online (109 p.). Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação, Campinas, SP. Disponível em: <http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/330995>. Acesso em : 25 maio 2021.
GIL-LOYZAGA, P. Córtex Auditivo: organização. 2016. Disponível em: http://www.cochlea.eu/po/cerebro-auditivo/talamocortex/cortex-auditivo-organizacao. Acesso em: 03 set. 2022.
HAGUIARA-CERVELLINI, N. A Musicalidade do Surdo: representação e estigma. São Paulo: Plexus Editora, 2003.
LENT, R. Cem Bilhões de Neurônios: Conceitos fundamentais de neurociência. Rio de Janeiro: Atheneu, 2004.
MICHAELIS. Dicionário brasileiro da língua portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 2015. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/.
ORTEGA, I. Musicoterapia e surdez: nova tecnologia. Jornal da Musicoterapia do Estado de São Paulo, São Paulo, 3. ed. ago. 2015, p. 4 – 11.
Como referenciar este artigo:
ARRUDA, Leonardo. "Musicalmente Surdo: uma proposta para educação musical para pessoas surdas". Blog C4, Campinas, NICS; UNICAMP, 30 setembro 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em: <https://unicampc4.blogspot.com/2022/09/musicalmente-surdo-uma-proposta-para.html>