Em blogs anteriores, venho abordando sobre a música presente na comunidade surda. Ainda que seja comum no pensamento popular de que a música não pode ser apreciada pelo surdo, comentei em textos anteriores a existência de grupos musicais, artistas e bandas composta por pessoas com surdez. Inclusive, projetos de educação musical e equipamentos voltados para a musicalização dessas pessoas. Um exemplo já mencionado é o instituto Som da Pele (1), gerenciado por Mário Silva (Batman Griô), que com tambores de maracatu, um metrônomo visual e o uso de Libras (Língua Brasileira de Sinais) ensina os ritmos regionais nordestinos às pessoas surdas. No blog de hoje, falarei sobre um protótipo que apresentei rapidamente no terceiro blog da série “A relação entre a música e a cultura surda”, chamado Musically Deaf (MD). Boa leitura!
Figura 1 - Participantes surdos do Batuqueiros do Silêncio, banda construída através do projeto Sons da Pele.
Fonte: https://www.redegn.com.br/?sessao=noticia&cod_noticia=159805
No segundo semestre de 2021, a maioria das atividades educacionais ainda estavam no modo virtual por consequência da pandemia do vírus Sars-Cov-2 decretado pelo Órgão Mundial da Saúde (OMS) no início de 2020. Por conta disso, os professores de música que trabalhavam com um público surdo, tiveram que adaptar suas práticas para os ambientes virtuais, uma vez que, sem as aulas presenciais, estes estudantes não tinham como remotamente sentir as vibrações sonoras emitidas pelos instrumentos musicais (ARRUDA, 2021). Dessa forma, o MD surge como uma proposta de ferramenta de Tecnologia Assistiva para preencher esta lacuna, a fim de auxiliar as aulas de musicalização de pessoas surdas em ambientes remotos virtuais.
O MD é um software que tem como pretensão auxiliar educadores musicais no ensino de andamento e noções rítmicas para pessoas surdas, seja individual ou em conjunto, presencialmente ou remotamente. Como no momento do surgimento dessa proposta estávamos majoritariamente realizando trabalhos remotos, então boa parte do projeto foi voltado para o uso da ferramenta em ambientes virtuais (como pode ser visto em Arruda e Abdala (2021)), mas também sendo possível de ser usada quando as atividades presenciais fossem permitidas novamente. Como forma de contornar o problema da falta de instrumentos pessoais de cada estudante, optamos por fazer os testes usando instrumentos caseiros produzidos com material como garrafas PET, colher de metal, copos de requeijão de plásticos e as mãos, passando inclusive a ser uma das recomendações para o uso do MD.
Os objetivos pretendidos para este software foram as seguintes: identificar, interpretar e codificar os sons produzidos pelos estudantes surdos remotamente localizados e mostrar essa codificação através de elementos gráficos e cores (ARRUDA, 2021). Para alcançar estes objetivos, foram combinados recursos da linguagem de programação visual livre Pure Data (Pd) (2), responsável pela identificação e interpretação das informações de áudio produzidos pelos estudantes e a plataforma do Processing (3), baseada na linguagem de programação C/C++, que ofereceu recursos para o desenvolvimento dos elementos gráficos e cores, usados na aplicação.
O Pd é uma linguagem de programação visual de código aberto que foi desenvolvido com o propósito de criar estruturas que processam dados genéricos (puros) em tempo real, imprescindível para o tipo de acessibilidade aqui apresentada, de acessibilidade musical. No caso do MD, o patch (4) desenvolvido em Pure Data, serviu para identificar os sons transmitidos pelos instrumentos tocados por cada estudante, decompor essas informações em regiões de alturas sonoras (grave, médio e agudos) e para cada uma dessas regiões, atribuindo um código referencial. Esse código era encapsulado em pacotes Open Sound Control (OSC) e enviado, através da rede, para a aplicação desenvolvida no Processing. A biblioteca do Processing responsável por descompactar e interpretar essa informação é a biblioteca oscP5 (5), desenvolvido por Andreas Schlegel (6). Para cada informação recebida do Pd, a aplicação do Processing resultava em um feedback visual no formato de um círculo com uma cor específica, que representava em qual altura sonora estava presente o instrumento percutido. Funciona como um metrônomo visual, porém os círculos somente aparecem quando um som é identificado nas regiões de frequências. As divisões das regiões e cores foram as seguintes:
- Graves (vermelho): 150 Hz a 200 Hz;
- Médio-graves e médios (verde): 350 Hz a 800 Hz;
- Médios-agudos (azul): 800 Hz a 1500 Hz;
- Agudos (amarelo): acima de 1900 Hz.
Em um teste realizado na aplicação do minicurso Musicalmente Surdo (falarei deste minicurso em um blog posterior), cada um dos instrumentos recomendados por nós atuava com mais presença nas regiões de frequências que determinamos. Dessa forma, enquanto realizávamos os testes dos instrumentos e o funcionamento da codificação do MD, percebemos que quando a garrafa PET era percutida em uma mesa, por exemplo, o círculo com a cor vermelha, portanto na região dos graves, era mostrado na tela da aplicação do Processing. O copo de requeijão de plástico, concentrava-se na região dos médios-graves, assim mostrando o círculo verde. As palmas respondiam mais na região dos médios-agudos, assim apresentando o círculo na cor azul. E por fim, as colheres de metais, região dos agudos, que mostrava o círculo na cor amarela.
Diante disso, em colaboração de Gerson Abdala, desenvolvemos o minicurso Musicalmente Surdo. Este minicurso visava a aplicação do MD em públicos de surdos em conjunto com ouvintes, além de compartilhar informações e histórias de pessoas surdas a fim de diminuir a impressão de que as pessoas surdas não podem apreciar a música. Por conta do MD permitir ser usado por várias pessoas ao mesmo tempo, isso possibilitou unir tanto ouvintes quanto surdos e, numa troca de sinergia, fosse possível realizar uma atividade de composição coletiva, sendo determinado uma sequência rítmica e deixando com que ambos os participantes (surdos e ouvintes) pudessem interagir uns com os outros. Porém, sobre este assunto, deixarei para o próximo blog em que falarei sobre o Minicurso Musicalmente Surdo e suas propostas.
Figura 2 - Participantes surdos e ouvintes presentes no minicurso Musicalmente Surdo e interagindo com o Musically Deaf (MD).
Fonte: Abdala; Arruda (2021).
Notas:
1 Disponível em: <https://www.instagram.com/somdapele>.
2 Disponível em: <https://puredata.info/>.
3 Disponível em: <https://processing.org/>.
4 Termo usado para fazer referência ao arquivo criado na linguagem de programação Pure Data.
5 Disponível em: <https://sojamo.de/libraries/oscP5/>.
6 Disponível em: <https://sojamo.de/>
Referências Bibliográficas
ARRUDA, L. Uma proposta de Tecnologia Assistiva remota para educação musical de surdos utilizando o Pure Data. In: ENCONTRO DO COLETIVO DE COMUNICAÇÃO, COGNIÇÃO E COMPUTAÇÃO C4, 2021, Campinas. 1º ENCONTRO DO COLETIVO DE COMUNICAÇÃO, COGNIÇÃO E COMPUTAÇÃO C4 2021, 2021.
ABDALA, G., ARRUDA, L. Musicalmente Surdo: uma experiência utilizando Tecnologia Assistiva remota para promover acessibilidade na educação musical de Surdos. In: ENCONTRO DO COLETIVO DE COMUNICAÇÃO, COGNIÇÃO E COMPUTAÇÃO C4, 2021, Campinas. 1º ENCONTRO DO COLETIVO DE COMUNICAÇÃO, COGNIÇÃO E COMPUTAÇÃO C4 2021, 2021.
Como citar este artigo:
ARRUDA, Leonardo. "Uma Tecnologia Assistiva remota para educação musical de surdos. Prazer, Musically Deaf (MD) !!". Blog C4, Campinas, NICS; UNICAMP, 01 setembro 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em: <https://unicampc4.blogspot.com/2022/09/uma-tecnologia-assistiva-remota-para.html>