Tocar um instrumento é um jogo?


 

Simona Cavuoto

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Cada instrumentista, desde o momento em que empunha o instrumento escolhido pela primeira vez, e essa escolha geralmente se dá por afinidade tímbrica ou preferência de altura, se depara com um longo caminho de aprendizado de um conjunto de modos e maneiras pelas quais as partes do corpo envolvidas (dedos, braços, boca, língua, dentes, etc.) tornam-se "alavancas" mecânicas que, atravès de movimentos finos, conseguem extrair  os mais variados sons dos instrumentos. 

O termo que nomeia esses modos e maneiras de tocar o instrumento está contido em uma única palavra geralmente usada no singular mesmo indicando uma ampla quantidade de métodos: a técnica.

Esta palavra genérica expressa o mecanismo físico graças ao qual a tecnologia do instrumento acústico responde com uma variabilidade de precisão proporcional à técnica do instrumentista e ao refinamento da tecnologia do próprio instrumento.

Para os instrumentos musicais em uso há centenas de anos, por exemplo como ocorre com o violino, a técnica é aprendida e transmitida entre gerações por meio da relação direta professor/aluno. Tal processo, representa um conjunto de valores, tais como: valor estético na busca por determinados sons; valor tecnológico na interação entre habilidades motoras e som em potencial oferecido pelo instrumento (vale ressaltar que a qualidade do instrumento influencia diretamente nos parâmetros físicos e acústicos do mesmo); um valor social e psicológico na vinculação de significados emocionais e sociais relacionados com esta atividade. 

O instrumento é posto em ação pelo homem e os sons resultantes, mesmo quando simples e desorganizados, podem agir por meio de elementos de multiplicidades que interagem de forma variada com a atividade humana através de movimentos, pensamentos, vibrações de onda mecânicas, frequências, emoções e brincadeiras. 

Segundo José Fornari :

 jogos descendem de atividades lúdicas exercidas principalmente por filhotes de diversas espécies, promovendo uma estratégia evolutiva para fomentar o treinamento simulado, em situação segura, de ações futuras (da vida adulta) normalmente arriscadas e perigosas, como a caça, o ataque e a defesa. Jogo é assim a simulação segura da realidade. Através de jogos, ocorre o processo espontâneo de enculturação, para a automatização de ações sociais que possibilitam maior e melhor integração, e assim a eficiência social do indivíduo em sua comunidade.(1)”


A presença mais evidente do jogo na atividade musical pode ser encontrada na herança linguística em diferentes línguas, por exemplo no verbo inglês to play ou em francês jouer, spielen em alemão, играть em russo: os significados são variados, como:  brincar, atuar, tocar, interpretar.

Jean Piaget (Neuchâtel, 1896, Genebra,1980), psicólogo, biólogo, pedagogo e filósofo suiço (2) que fundou a epistemologia genética - teoria do conhecimento baseada no estudo da gênese do pensamento humano -, após uma atenta observação das crianças, dividiu o desenvolvimento cognitivo do ser humano em quatro estágios: inteligência sensório-motora, pré-operatória, operatório concreto e operatório formal ou abstrato.  

A atividade lúdica infantil é descrita por Jean Piaget a partir de três pontos: a dimensão sensorial, a significação e a regra. Segundo François Delalande (3), a atividade musical e o brincar cruzam-se em 3 momentos fundamentais: o jogo do sentido motor pela busca do som e do gesto, o jogo simbólico pela expressão e significação, o jogo de regras pela organização dos sons. Assim ele mesmo se expressa em entrevistas contidas no livro “A música è um jogo de criança (4)”:

O jogo sensório-motor das crianças menores, ou jogo de exercício, como é designado, tem uma função de adaptação. A criança toma conhecimento do mundo exterior, se assim podemos dizer, pelas suas mãos e pelos seus gestos. Ela adquire certo número de esquemas motores que lhe dão domínio sobre seu entorno. O pianista que trabalha seus gestos não está longe dessa situação. Ele também adquire, por meio dos exercícios, automatismos motores […]. Não se deve pensar que alguém sofra frente ao teclado do piano, enquanto outro se alegra por conseguir fazer uma pirueta no parque. É verdade que o exercício de motricidade dá prazer a criança, mas muitas  vezes ela erra, se aborrece, chora…Quanto ao pianista, ele também experimenta prazer em dominar seus gestos, em conseguir executar um movimento que ele teve problemas em assimilar. O retrato de um instrumentista que sofre dia e noite, animado pela única esperança de ser um dia celebre, é completamente inverossímil. As escalas que sobem sozinhas, às vezes, são fonte de uma profunda alegria!”  


 Crianças de origem bantu tocando um instrumento chamado mbira

 Figura 1 — Crianças de origem bantu tocando um instrumento chamado mbira (5)

Dominar o gesto e através do movimento regulado, interagindo com o corpo de um instrumento musical cuja sonorização é pessoal e única, torna o momento da repetição, do controle dos movimentos, do espanto para a criação do som em seu estado puro, da descoberta de ligações causa-efeito entre movimento e variabilidade sonora, um verdadeiro jogo de interação com a matéria físico-sonora.

O instrumento construído com materiais presentes na natureza (madeira, osso, tripas de animais, crina de cavalo, etc.) ou processados ​​(metais nobres) pode responder de forma única, tanto para as ações mecânicas de intérpretes diferentes, quanto às mudanças climáticas no ambiente,  possibilitando uma exploração da matéria através de um som que è único e sempre vivo  no contexto temporal e espacial.

Tocar um instrumento musical possui as características semelhantes a de um jogo, também para a competição em que o instrumentista pode desenvolver, com outros ou consigo mesmo, podendo se enquadrar em algumas das categorias descritas por Dwight Pavlovic: Sandbox (pense nos virtuosos como Paganini ou Liszt que definiram e modificaram os limites das dificuldades técnicas em seu tempo), Estratégia, (toda performance musical produzida por 2 ou mais músicos é um verdadeiro jogo simultâneo em tempo real),  Shooter (todo músico luta contra o instrumento escolhido muitas vezes em sua vida musical). 


O renomado violinista americano Joshua Bell, em várias entrevistas, declarou que, quando adolescente, dedicava bastante tempo ao jogo de vídeo games a ponto de apresentar sintomas de ansiedade; o mesmo relata que brincava escondido dos pais para alcançar as melhores classificações. Ele diz que dominava Donkey Kong, Pac Man e Centipede, jogos desenvolvidos nos anos ‘80: atualmente, Joshua Bell está planejando, junto com outras pessoas, um videogame baseado na exploração do violino.



  

                                     

    

Figura 2 – O violinista americano Joshua Bell


                                   

Figura 3 – O videogame dos anos 80 Pac-Man

Jogo e atividade motora em tocar um instrumento se aproximam, dada a repetição incansável finalizada, à superação de desafios e limites que podem ser encontrados também na prática dos jogadores de videogames e estes poderiam ser chamados de virtuosi, se esse termo não fosse para eles um tanto retrô e  antiquado.




 Notas

1 FORNARI, José. "Sobre a classificação de jogos - parte 1". Blog C4, Campinas: Nics; Unicamp, 07 junho de 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em: <https://unicampc4.blogspot.com/2022/06/sobre-classificacao-de-jogos-parte-1.html>.
Jean Piaget – Wikipédia, a enciclopédia livre (wikipedia.org).
3 PIAGET, J. La rappresentazione del mondo del fanciullo. Milano, Bollati Boringhieri, 2013. Lo sviluppo mentale del bambino e altri studi di psicologia. Einaudi, collana Piccola biblioteca  Einaudi, Nuova serie, Torino. 2000.
4 DELALANDE, François, A música é um jogo de criança. Tradução Alessandra Cinta. São Paulo: Editora Renata Farhat Borges, 2019.
5 Mbira ou kalimba é um instrumento originário da África subsaariana pertencente à família dos lamelofones da categoria dos idiofones dedilhados. MBIRACLES: A difusão da comovisão bantu no Brasil através da música de MBIRA (geledes.org.br)


Referências bibliográficas:

 

DELALANDE, François, A música é um jogo de criança. Tradução Alessandra Cinta. São Paulo: Editora Renata Farhat Borges, 2019.


FORNARI, José. "Sobre a classificação de jogos - parte 1". Blog C4, Campinas: Nics; Unicamp, 07 junho de 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em:<https://unicampc4.blogspot.com/2022/06/sobre-classificacao-de-jogos-parte-1.html>.


MECHANIC, Michael. Joshua Bell’s Virtuoso Reality. Entrevista Maio/ Junho 2011. Mother Jones : <Joshua Bell’s Virtuoso Reality – Mother Jones> .


Como referenciar este artigo:

CAVUOTO, Simona. Tocar um instrumento é um jogo? Blog C4: Nics; UNICAMP, 21 out. 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em: <https://unicampc4.blogspot.com/2022/10/tocar-um-instrumento-e-um-jogo.html>