Análise espectromorfológica da paisagem sonora do videogame Limbo - parte 1

Vinicius Yglesias

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Em artigo anterior aqui no Blog C4, sugeri como é possível estabelecer relações entre a música eletroacústica e o áudio em games, levando em conta como a mídia dos games se beneficiou das novas técnicas composicionais surgidas com o movimento da música eletroacústica. Essas novas técnicas (como a síntese sonora e a manipulação em estúdio de sons gravados) também expuseram a necessidade de novas terminologias de análise musical que levassem em conta esses novos elementos musicais, que não tratavam-se mais apenas de notas musicais específicas, abrangendo também sonoridades mais amplas e distantes do sistema tonal ou modal. Uma dessas terminologias é a “espectromorfologia”, proposta pelo compositor Denis Smalley.

Smalley define espectromorfologia como “uma abordagem a materiais sonoros e estruturas musicais que se concentra no espectro de todas as alturas disponíveis e sua formação no tempo”1  (SMALLEY, 1986, p. 66). Essa abordagem abrange um escopo mais amplo das características dos sons do que é possível grafar com a notação musical tradicional, e portanto, de acordo com o autor, demanda novas percepções e novos critérios de análise musical, os quais serão expostos ao longo deste e dos próximos dois artigos meus aqui no Blog C4.

A incorporação dessas sonoridades às técnicas de composição musical levou Pierre Schaeffer (2017) a cunhar o termo “objeto sonoro” (sound object), que trata-se da “união de uma ação acústica e uma intenção de escuta”2 (SCHAFFER, 2017, p. 213), ou seja, quando o fenômeno acústico de um som é escutado por um indivíduo com a intenção de ser escutado como um objeto sonoro.

Essa intenção de escuta de um som como objeto sonoro, tendo em vista apenas suas características acústicas, livre de aspectos referenciais, foi chamado por Schaeffer (2017) de “escuta reduzida”, que trata-se da escuta exclusivamente das propriedades acústicas de um som, ignorando sua fonte. Por meio da escuta reduzida, Schaeffer acreditava que somos capazes de escutar e analisar qualquer som não por meio de seus aspectos referenciais, mas como “objetos sonoros”, ou seja, por meio das características exclusivamente acústicas deste som, independentemente das referências evocadas por eles.

Entretanto, Smalley aponta algumas dificuldades na utilização desses novos critérios. A principal delas é a falta de uma terminologia comum, pois ao mesmo tempo que os símbolos de notação musical da música tradicional ainda são limitadores no contexto de uma obra eletroacústica, a utilização de termos não musicais muitas vezes desloca a atenção do som analisado para a maneira como ele foi produzido ou para a sua fonte, deixando de descrever características do som em si para descrever aspectos aos quais o som se referencia.

A noção de “objeto sonoro” e de “escuta reduzida” de Schaeffer permanecem como referências para a análise de música eletroacústica até os dias atuais, em grande medida por ser complicado, em muitas obras dessa estética, perceber qualquer referência no som, visto que tanto o ponto de partida quanto o objetivo é a manipulação direta de características do próprio som, sem recorrer à utilização de gravações de qualquer natureza.

A terminologia de análise musical proposta por Smalley (1986) conta com três elementos: tipologia espectral, morfologia e movimento; dentre os três, será apresentado no presente artigo apenas a tipologia espectral, enquanto os seguintes serão retomados em uma segunda parte. A partir desse embasamento, será observado como essa terminologia pode ser aplicada na análise da paisagem sonora do videogame Limbo, que de acordo com seu compositor, Martin Stig Andersen, todos os sons, mesmo os mais simples, como sons de passos, são pensados como material musical (SOLBERG, 2016). Assim, a paisagem sonora analisada abarca tanto a trilha musical eletroacústica quanto o ambiente sônico do game, conforme definidos por Yglesias, Emboaba e Fornari (2022, no prelo).

A escolha de Limbo ocorreu por conta do compositor e sound designer do game, Martin Stig Andersen, ter sido aluno de Smalley após sua formação na Royal Academy of Music, na Dinamarca. Por conta disso, acredito que a teoria de Smalley aplicada à paisagem sonora do game pode ser importante para compreender possíveis aplicações práticas desta, além de contribuir com a questão da relação entre música e efeitos sonoros trazida em meus artigos anteriores, visto que Andersen afirma tratar todo e qualquer som como um som musical.

O primeiro elemento definido por Smalley (1986, p. 64) é a “tipologia espectral”, que determina “como alturas são combinadas para formar diferentes tipos espectrais”3. O compositor pensa na tipologia espectral como um “continuum” (SMALLEY; GRAS; ARAGÃO, 2021) entre nota e ruído4 (noise), o qual o autor chama pitch-effluvium continuum, ou “continuum de eflúvio de alturas” (Ibidem). A nota musical, por sua vez, pode ser subdividida entre “nota propriamente dita”, “espectros harmônicos” e “espectros inarmônicos”.



Figura 1: Continuum nota-ruído. Fonte: Smalley, Gras e Aragão (2021)



A “nota propriamente dita” se refere às notas tradicionalmente grafadas em uma partitura tradicional, que representam a frequência fundamental de uma nota musical. Já o “espectro harmônico”, na definição do autor, diz respeito a quando os harmônicos de uma frequência fundamental também são utilizados conscientemente como material composicional. De acordo com Smalley (1986), esse fator é dependente de contexto. Uma nota grave de piano escutada a distâncias diferentes, por exemplo, revela características espectrais diferentes, visto que, quanto mais próximo do instrumento, maiores nuances espectrais são percebidas ao longo da sustentação da nota.

O “espectro inarmônico”, de acordo com Smalley, não poderia ser verdadeiramente utilizado composicionalmente sem assistência tecnológica, visto que se trata da utilização mais ampla de todas as frequências reproduzidas no espectro de uma nota fundamental, em particular aquelas sem relação com o espectro harmônico. Em suma, o espectro inarmônico busca explorar as diversas frequências atingidas pelo ataque de uma nota fundamental, mas que não são contempladas em seus parciais.

Entre a nota e o ruído, encontra-se o que Smalley (1986) chama de “espectro nodal”, ou nodal spectrum, traduzido como “nódulo” por Smalley, Gras e Aragão (2021). Smalley associa esse tipo espectral a sons metálicos, que embora não apresentem frequência fundamental definida, são percebidos como sons com qualidades ricas e unificadas, e ao serem escutados mais de perto ou amplificados, é possível encontrar notas, espectros harmônicos e inarmônicos em sua formação. Os exemplos mais familiares citados pelo autor são os sons de pratos de uma orquestra. Outros sons de qualidades similares são os sons de sinos, como os sinos enormes de catedrais.



Por fim, o ruído é definido por Smalley (1986) como um espectro de densidade sonora tão comprimida que não permite a identificação de qualquer estrutura interna de frequências. O autor cita como exemplo os sons do vento e do mar.4

Exposta a terminologia de Smalley em relação às tipologias espectrais, na segunda parte deste artigo tratarei das maneiras de interação dessas tipologias ao longo de um período de tempo e como esses dois fatores se combinam para a criação de movimento.


Notas

1 (...) an approach to sound materials and musical structures which concentrates on the spectrum of available pitches and their shaping in time. (...)

2 [The sound object is] the coming together of an acoustic action and a listening intention.

3 (...) how pitches are combined to form different sound types

4 Ruído também pode ser entendido como qualquer som indesejado, entretanto, optei por manter a tradução utilizada por Smalley, Gras e Aragão (2021).


Referências

SCHAEFFER, Pierre. Treatise on Musical Objects: an essay across disciplines. Translated by Christine North and John Dack. Oakland: University of California Press, 2017.

SMALLEY, Denis. Spectro-morphology and Structuring Processes. In: EMMERSON, Simon (ed.). The Language of Electroacoustic Music. London: The Macmillan Press Ltd, 1986.

SMALLEY, Denis. GRAS, Germán E.; ARAGÃO, Thaís A. Espectromorfologia e Processos de Estruturação. Revista Vórtex, Curitiba, v. 9, n.1, p. 1-38, 2021.

SOLBERG, Dan (2016). The mad science behind inside’s soundtrack. Disponível em: <https://killscreen.com/previously/articles/mad-science-behind-insides-soundtrack/>. Acesso em: 25 set. 2022.

YGLESIAS, Vinicius. CAMARGO, Fernando Emboaba de. FORNARI, José. Da Paisagem Sonora ao Ambiente Sônico: uma proposta taxonômica para o estudo de paisagens sonoras em games. In: SBGAMES, 22., 2022, Natal. Anais eletrônicos…: Trilha Artes e Design – Full Papers. Natal: Sociedade Brasileira de Computação, 2022. No prelo.


Como referenciar este artigo:

YGLESIAS, Vinicius. Análise espectromorfológica da paisagem sonora do videogame Limbo - parte 1. Blog C4, Campinas: Nics; Unicamp, 25 nov. 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em: https://unicampc4.blogspot.com/2022/11/analise-espectromorfologica-da-paisagem.html