Uma breve história sonora dos games - parte 3

Vinicius Yglesias

viniciusyglesias.musico@gmail.com

http://lattes.cnpq.br/7940545685810813


No artigo anterior, propus que a criação e evolução do áudio para games poderia estar relacionado a dois princípios cognitivos relacionados à escuta de uma paisagem sonora, a similaridade variante e a valoração contrastiva.

Nessa terceira parte, vou tratar sobre como no período de 1985 a 1995, aproximadamente, o advento dos consoles domésticos influenciaram na recepção e na percepção do áudio desses games. Ao mesmo tempo, traterei sobre como o áudio de games, novamente considerados aqui como a paisagem sonora analisada, passou de um elemento de menor importância estética, para um elemento essencial na consolidação da estética dos games como mídia e na criação de uma estética sonora própria.


Mario e Sonic, mascotes da Nintendo e Sega, respectivamente, que foram as maiores responsáveis pela consolidação da indústria de games entre o final da década de 1980 e 1990. Fonte: Nintendo Blast. Disponível em: https://www.nintendoblast.com.br/2013/10/a-historia-de-confrontos-e-alianca.html>. Acesso em: 03 nov. 2022.


Com a evolução tecnológica e possibilidade de maior complexidade nas músicas de games, surge a necessidade de profissionalização nessa área para a mídia. Além disso, a necessidade mercadológica de atrair mais consumidores por meio de “efeitos sonoros” perdeu espaço, abrindo caminho para maior preocupação estética, com a criação de músicas e melodias marcantes, que perdurasse na mente dos jogadores por mais tempo do que o despendido no game (COLLINS, 2008; ROVERAN, 2017).

Em entrevista concedida ao website “Game Developer”1, Hirokazu “Hip” Tanaka, em tom crítico, fala um pouco sobre influências composicionais da época. Na entrevista, o compositor afirma que as músicas dos games eram em geral baseadas nas músicas pop alegres do período, porém o compositor não acreditava que tais melodias correspondiam ao clima dos games, fator que o motivou a buscar o caminho oposto para a trilha sonora de Metroid, em 1986.

A fala de Tanaka traz diversas considerações interessantes que podemos relacionar a algumas ideias de Jonathan Sterne (2003). Talvez a mais relevante seja em relação à plasticidade2 do áudio na mídia. Nos primeiros games, havia a primazia dos efeitos sonoros, porém, em sua passagem para o ambiente sonoro privado, a música tomou o papel principal, representando uma transformação da função do áudio na mídia.

Outro fator que pode ser extraído da fala de Tanaka, este presente de maneira mais implícita, é como a influência da sociedade que envolve a recepção das mídias atua em uma via de mão dupla, ou seja, ele suscita não apenas reações favoráveis ao fluxo da indústria cultural, contexto da música pop citada por Tanaka, mas também provoca reações diametralmente opostas com igual vigor como forma de tentar combater esse fluxo.

Além disso, no início da década de 1990, a principal modificação em relação ao áudio nos consoles da Nintendo, especificamente, foi marcada por uma transição tecnológica, da síntese FM (Frequency Modulation) para síntese wavetable, a qual, conforme Fornari (2019), permite “‘sintetizar’ um som conhecido com bem menor esforço computacional e bem maior proximidade perceptual auditiva”, capacidade aproveitada pela desenvolvedora para se destacar da Sega, sua concorrente no período.

Dessa forma, a definição da estética sonora utilizada no período foi tomada a partir das tecnologias disponíveis nos consoles, visto que o Mega Drive, console da Sega, manteve estética timbrística da síntese FM, enquanto no Super Nintendo, conforme escreve Roveran (2017), a mímese mais fiel de instrumentos reais possibilitada pela síntese wavetable incentivou a composição por meio de técnicas mais tradicionais, próximas da ópera e da trilha para cinema, como o Leitmotiv, utilizando timbres mais próximos de instrumentos acústicos.

Portanto, parte do que definia o diferencial das empresas estava na maneira com a qual utilizavam o áudio nos games. Esse fator demonstra uma preocupação para com a criação de paisagens sonoras virtuais3 mais complexas e individuais, a partir de “marcos sonoros” (SCHAFER, 2011) característicos de cada uma das empresas. Nota-se que a preocupação deixa de ser a função do áudio dos games no ambiente sonoro em torno deles e passa-se a ter um foco maior na construção de paisagens sonoras virtuais (ou abstratas) que sejam esteticamente relacionadas às imagens das empresas.

A competição principalmente entre Sega e Nintendo no início da década de 1990 incentivou a melhoria constante dos games, e como consequência, aumentou as possibilidades de utilização do áudio nestes. Por conta disso, no fim da mesma década, a utilização de sons gravados em qualidade de um CD musical (WESKE, 2000), possibilitando ainda maior realismo na construção das paisagens sonoras virtuais da mídia, momento que será detalhado na próxima e última parte deste artigo.


Notas

1 Disponível em: <https://www.gamedeveloper.com/audio/shooting-from-the-hip-an-interview-with-hip-tanaka>. Acesso em: 03 nov. 2022.

2 Sterne chama de “plasticidade das mídias” a capacidade de uma mesma mídia possuir mais de uma função, referindo-se por exemplo ao telefone, quando além de uma tecnologia de comunicação, era utilizado para a transmissão de concertos por telefone.

3 Schafer utiliza “paisagens sonoras abstratas” para tratar de paisagens sonoras artificialmente construídas. Neste artigo estarei utilizando, ao invés disso, o termo “paisagens sonoras virtuais”, para deixar clara a relação do uso do termo com o mundo virtual dos games.


Referências

BRANDON, Alexander. Shooting from the Hip: An interview with Hip Tanaka. Disponível em: <https://www.gamedeveloper.com/audio/shooting-from-the-hip-an-interview-with-hip-tanaka >. Acesso em: 08 jun 2022.

COLLINS, Karen. Game sound : an introduction to the history, theory and practice of video game music and sound design / Karen Collins. Massachusetts Institute of Technology. MIT Press. Cambridge, 2008. 204p.

FORNARI, José. Avanços e caminhos da computação musical – parte 3. Blogs de Ciência da Universidade Estadual de Campinas. ISSN 2526-6187. 20 nov. 2019. Disponível em: <https://www.blogs.unicamp.br/musicologia/2019/11/20/35/>. Acesso em: 05 nov. 2022.

ROVERAN, Luiz Fernando Valente. Música e adaptabilidade no videogame: procedimentos composicionais de música dinâmica para a trilha musical de jogos digitais. Dissertação de Mestrado - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes. Campinas, 2017.

SCHAFER, R. Murray. O ouvido pensante/R. Murray Schafer; tradução de Marisa Trench de O. Fonterrada, Magda R. Gomes da Silva, Maria Lúcia Pascoal; revisão técnica de Aguinaldo José Gonçalves. - 2.ed. - São Paulo: Ed. Unesp, 2011. 408p.

STERNE, Jonathan. The Audible Past: cultural origins of sound reproduction. Duke University Press, 2003.

WESKE, J. Digital Sound and Music in Computer Games. Chemnitz, 2000. Artigo online publicado em 2000 para o projeto Neue Medien im Alltag da Technische Universität de Chemnitz. Disponível em <http://3daudio.info/gamesound/index.html> Acesso em: 08 jun 2022.


Como referenciar este artigo:

YGLESIAS, Vinicius. Uma breve história sonora dos games – parte 3 Blog C4, Campinas: Nics; Unicamp, 08 nov. 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em: https://unicampc4.blogspot.com/2022/11/uma-breve-historia-sonora-dos-games_0602691319.html