Ludomusicologia cognitiva – A encruzilhada entre três campos de estudo e suas relações

Vinicius Yglesias

viniciusyglesias.musico@gmail.com

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Em um de meus primeiros artigos aqui no Blog C4, tratei da relação entre música, jogo e cultura, tomando como estudo de caso a brincadeira de esconde-esconde presente no game Outer Wilds, de 2019. A partir dele, busquei demonstrar como essa relação encontra-se de maneira tão profunda na espécie humana como um todo, ao ponto de transpassar para nossas criações de mundos virtuais diversos e distantes do nosso, como ocorre neste game.


Tefra e Galena, personagens de Outer Wilds que participam da brincadeira de esconde-esconde no game junto ao protagonista.


Algum tempo depois, me deparei com o termo “ludomusicologia”, conforme definido adiante, que em certo sentido foi cunhado com o objetivo de tornar explícita essa relação em estudos sobre músicas de games e áudio de games, de maneira geral. Conforme escreve Smith (2018, p. 484), o termo em si já demonstra “a significant link between playing games and playing music1. Trago a citação no idioma original com o propósito de destacar a ambiguidade do verbo play em inglês, que pode significar tanto “jogar” quanto “tocar”, no sentido de tocar um instrumento musical, fator que, inclusive, reforça a ligação entre ambas as atividades. O próprio estudo de Smith é uma releitura de sua primeira publicação, I can see tomorrow in your dance (SMITH, 2004), na qual já argumentava que o estudo de música de games se tornaria cada vez mais relevante academicamente.

O termo “ludomusicologia” é descrito pela primeira vez por Guillaume Laroche em Karbani (2007). Embora o foco de Laroche ao propor o termo fosse primordialmente nos aspectos técnicos em relação à composição musical de games, dando menor importância ao contexto sociológico em que era realizada, o termo frequentemente vem sendo utilizado de maneira oposta, embasado principalmente em Moseley (2013, p. 7), que escreve que a “ludomusicology recognizes that music and digital games are not merely to be read, seen, or heard, but played”, também aproveitando-se da ambiguidade do verbo play.

É nesse sentido que o termo é apresentado no livro “Ludomusicology: Approaches to Video Game Music” (KAMP; SUMMERS; SWEENEY, 2016). A publicação reúne estudos voltados para o estudo de música de games, tanto de processos técnicos envolvidos em sua composição (BAYSTED, 2016), quanto em metodologias de análise (ELFEREN, 2016) e a apropriação de games de músicas clássicas pré-existentes (GIBBONS, 2016), imbuindo debates diversos sobre a relação entre música, games e cultura. Além disso, no campo da performance, Fritsch (2021) utiliza este termo para se referir ao ato de jogar games como um tipo de performance musical.


Capa do livro Ludomusicology: Approaches to Video Game music.


A relação entre música e games tem sido amplamente abordada em diversas publicações aqui mesmo do Blog C4, a partir de referências como Jørgensen (2007), Collins (2008), Meneguette (2016), Camargo (2018), entre diversas outras. Entretanto, os fatores cognitivos provenientes dessa relação ainda foram menos enfatizados. Moseley (2013) já afirmava que a partir da perspectiva ludomusicológica, a música abarca um conjunto de atitudes cognitivas, tecnológicas e sociais em relação a maneiras de se comportar por meio do som e sua representação em mídias.

Um dos primeiros estudos que trata da ludomusicologia (ainda que não use o termo) a partir do viés cognitivo é o de Grimshaw, Lindley e Nacke (2008), que através de metodologias de coletas de bio sinais involuntários, tais como sinais neurais de eletroencefalografia e variação da resposta galvânica da pele, entre outros, pesquisa como diferentes elementos do áudio de um game pode afetar o comportamento dos jogadores. Saaty e Hashemi (2018), conforme descrito em artigo anterior, utilizam do método de eye tracking para investigar a influência do áudio nas decisões do jogador em diferentes games. Há também um estudo de Moraes (2020) que trata de processos cognitivos relacionados à escuta da trilha musical do game Cuphead durante o game. Por fim, a expressão “musicologia cognitiva” também aparece com certa frequência na literatura acadêmica. Honing (2004) coloca o campo como uma subdivisão da musicologia sistemática e como sinônimo de cognição musical, enquanto a expressão também aparece como uma subdivisão do campo da cognição musical em si. (CAMBOUROPOULOS; KALIAKATSOS-PAPAKOSTAS, 2021).



Considerando a ampla interdisciplinaridade que envolve os campos citados, assim como suas diversas classificações, sugiro neste artigo, a partir desses precedentes, a utilização da expressão “ludomusicologia cognitiva” como um termo que abarca estudos de musicologia e cognição musical que tomem games como objeto de estudo, levando em conta que a ludomusicologia, conforme afirmado por Moseley (2013), abarca tanto aspectos cognitivos quanto sociais abordados nessas pesquisas. Além disso, conforme destacam Meyer (1956) e Huron (2006), o contexto e o processo de enculturação de um indivíduo também são fatores determinantes nos processos cognitivos de interpretação e interação com sons. Por conta disso, acredito que a expressão “ludomusicologia cognitiva” pode abarcar satisfatoriamente estudos que unam esses três campos, a saber, a musicologia, a cognição musical e os games.


Notas

1 "uma ligação significativa entre jogar jogos e fazer música"

2 "ludomusicologia entende que música e games não são apenas para ser lidos, vistos, ou escutados, mas para serem jogados[/tocados]"


Referências Bibliográficas

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CAMARGO, Fernando Emboaba de. Interatividade e Narratividade sonora nos games. Universidade Estadual de Campinas, 2018. Área de concentração em Música: Criação, Teoria e Prática. Instituto de Artes. Campinas, 2018.

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Como referenciar este artigo:

YGLESIAS, Vinicius. Ludomusicologia cognitiva – A encruzilhada entre três campos de estudo e suas relações. Blog C4, Campinas: Nics; Unicamp, 16 mai. 2023. ISSN: 2764-5754. Disponível em: https://unicampc4.blogspot.com/2023/05/ludomusicologia-cognitiva-encruzilhada.html