Os games musicais e a gamificação da performance musical – parte 1

Vinicius Yglesias

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Um de meus primeiros artigos aqui no blog foi sobre algumas relações entre música, jogos e cultura a partir do game Outer Wilds, no qual há uma brincadeira de esconde-esconde em que o protagonista deve se guiar pela música tocada em um rádio que está junto aos personagens que deve encontrar. A meu ver, os games musicais são um tipo de game que sintetiza de maneira ainda mais clara esta relação, visto que utiliza de músicas populares para atrair jogadores que em outras circunstâncias provavelmente não teriam interesse na mídia.

Os games musicais são games nos quais o áudio está diretamente relacionado à sua jogabilidade. Andersen (2016), compositor e sound designer, chama essa relação de “jogabilidade direcionada por áudio” (audio-driven gameplay), razão da terminologia de “som direcional” que sugeri em artigo anterior para tratar da maior parte do áudio de games musicais. Esses games, de maneira geral, podem ser classificados em duas categorias: 1) games de dança e 2) games de simulação da performance de um instrumento musical.

De acordo com Smith (2004), um predecessor importante dos games musicais em geral foi o karaokê, cujo nome significa “orquestra vazia”1, referindo-se ao fato de que o aparelho tocava apenas a parte instrumental de uma música e o “vazio” deveria ser preenchido com um indivíduo cantando. Smith (Ibid, p. 59) destaca que o game musical Dance Dance Revolution (DDR), de 1998, era referido na imprensa da época como um “karokê para os pés”. Isso porque o game, divulgado como um “simulador de dança”, foi desenvolvido para ser jogado com uma espécie de “tapete de dança” (dance floor) no qual haviam setas para quatro direções. Dessa forma, o jogador deveria pisar na seta que correspondesse à indicação da tela no momento certo para ser bem sucedido.


Flyer de divulgação do game Dance Dance Revolution (DDR). Disponível em: <https://flyers.arcade-museum.com/videogames/show/2242>. Acesso em: 29 ago. 2023.



O caso de DDR apresenta uma característica marcante dos games musicais: os dispositivos de controle utilizados. De acordo com Tondorf e Hounsell (2022), o dispositivo utilizado para controlar um game (controle, teclado e mouse, kinect etc) pode ser um fator impactante na percepção de diversão ao jogá-lo. Em DDR, este dispositivo se trata do tapete de dança (dance floor) criado especificamente para o game, enquanto em Just Dance, outra franquia de games de dança, há diversos dispositivos de controle que o jogador pode utilizar para jogar.2 Esses dispositivos têm a função de identificar a similaridade da pose do jogador com a do avatar no game em cada momento da dança, atribuindo uma pontuação de acordo com esta similaridade.



Outra vertente popular dos games musicais é a dos games que simulam a performance de um instrumento musical. A ideia desse estilo de game partiu da desenvolvedora Konami com a publicação de GuitarFreaks e DrumMania em 1999, a princípio exclusivamente para os fliperamas do Japão (Wilson, 2010). Ambos os games são apelidados de Gitadora, referente à pronúncia aproximada das palavras “guitar” e “drum” em japonês.

Os games consistem em um dispositivo em formato de guitarra e bateria, respectivamente, que buscam dar ao jogador a sensação de estar tocando os instrumentos junto com as músicas do game. No braço da guitarra, há 5 botões com cores diferentes para indicar ao jogador qual deve apertar, e no corpo dele há uma alavanca que deve ser ativada junto aos botões do braço, simulando o movimento de tocar as cordas de uma guitarra real. Enquanto isso, em DrumMania, o dispositivo possui uma cor específica no aro de cada peça da bateria, que é montada de maneira similar a uma bateria real. Conforme a imprensa da época, os games poderiam ser tocados separadamente ou em dupla, com um jogador em cada instrumento.







Outra franquia de jogabilidade similar é Taiko no Tatsujin (literalmente, mestre da bateria). O taiko é um instrumento tradicional japonês utilizado em contextos diversos, tanto na música clássica japonesa quanto em cerimônias religiosas (Powell, 2012). De acordo com Wong (2000), o taiko, além do instrumento em si, seria também uma maneira de tocar que tradicionalmente combinaria música com artes marciais. Nos games da franquia Taiko no Tatsujin, o jogador toca em um dispositivo que simula um taiko, no qual o centro do instrumento representa os círculos vermelhos da tela do game, enquanto as bordas representam os círculos azuis.



Embora o sucesso de Gitadora e Taiko no Tatsujin tenha ficado restrito praticamente ao Japão, eles foram o embrião de uma das franquias mais conhecida desse estilo, a franquia Guitar Hero, de 2005, que alcançaria amplo sucesso, chegando a arrecadar, de acordo com matéria do “O Globo”, mais de U$ 1 bilhão em vendas para a Activision Blizzard, desenvolvedora do game. O sucesso da franquia evidentemente inspirou continuações e novos games baseados em sua jogabilidade, como Rock Band, Guitar Flash e Piano Tiles, este último tendo se tornado o aplicativo de celular com maior número de downloads em 2014 (Grubb, 2014).


Neste artigo busquei apresentar, por meio de uma breve introdução à origem dos games musicais, como eles de certa forma sintetizam a relação entre música, jogos e cultura à qual abordei anteriormente aqui no blog. Observamos que desde Guitar Freaks até Piano Tiles, esse estilo de game atingiu grande sucesso com diversos tipos de público. Na próxima parte deste artigo, falarei sobre games não musicais, porém que utilizam elementos da jogabilidade de games musicais de maneira mais complementar, visto que ainda que a performance musical não seja o objetivo principal, ela é determinante para o prosseguimento em determinados games.


Notas

1 Kara (空) = vazio e oke = o início da palavra “orquestra” na pronúncia do sotaque japonês, que soa aproximadamente como “okesutora”

2 A título de exemplo, uma lista dos dispositivos com suporte para Just Dance 2022 está disponível em: <https://www.ubisoft.com/en-us/help/just-dance-2022/gameplay/article/supported-peripherals-for-just-dance-2022/000099281>. Acesso em: 29 ago. 2023.


Referências

ANDERSEN, Martin Stig. Inside: A Game That Listens. Game Developers Conference, 14 a 18 de Março de 2016.

GRUBB, Jeff. Don’t Tap the White Tile is just the latest hit to prove no one really understands mobile gaming. Venture Beat, disponível em: <https://venturebeat.com/games/dont-tap-the-white-tile-is-just-the-latest-hit-to-prove-no-one-really-understands-mobile-gaming/>. Acesso em: 29 ago 2023.

POWELL, Kimberly A. Composing Sound Identity in Taiko Drumming. Anthropology & Education Quarterly, v. 43, no. 1, pp. 101-119, 2012.

SMITH, Jacob. I Can See Tomorrow in Your Dance: A Study of Dance Dance Revolution and Music Video Games. Journal of Popular Music Studies, v. 16, p.58-84, 2004.

TONDORF, Diego Fellipe; HOUNSELL, Marcelo da Silva. Constructs  and  Outcomes  of  Fun  in  Digital Serious Games: The State of the Art. Journal on Interactive Systems, v. 13, no. 1, 2022.

WILSON, Jeffrey L. The 10 Most Influential Video Games of All Time. Pcmag, disponível em: <https://web.archive.org/web/20120511221500/http://www.pcmag.com/article2/0,2817,2364895,00.asp>. Acesso em: 29 ago. 2023.

WONG, Deborah. Taiko and the Asian/American Body: Drums, "Rising Sun," and the Question of Gender. The World of Music, v. 42, no. 3, pp. 67-78, 2000.


Como referenciar este artigo:

YGLESIAS, Vinicius. Os games musicais e a gamificação da performance musical – parte 1. Blog C4, Campinas: Nics; Unicamp, 05 set. 2023. ISSN: 2764-5754. Disponível em: https://unicampc4.blogspot.com/2023/09/os-games-musicais-e-gamificacao-da.html