Áudio dinâmico: o coringa dos games no uso de música e efeitos sonoros

 Leonardo Porto Passos

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Um assunto que vem sendo cada vez mais comentado em relação a sons para games é o áudio dinâmico. O conceito não é novo, e está presente em muitos games que você já jogou, ainda que não tenha percebido. Em Super Mario World, clássico dos clássicos, o áudio dinâmico já estava lá, deixando tudo ainda mais espetacular e divertido.


Mas do que se trata esse tal de “áudio dinâmico”?

Sabe quando você está lá em um game, “passeando” com o seu personagem, daí você entra em um determinado ambiente e a música muda? Ou então quando você pega um power up (um coletável que confere melhorias ao personagem) e, por exemplo, o som de pulo do personagem passa a ser outro? Bom, isso é áudio dinâmico. Quando um efeito sonoro ou a música se altera em resposta a um evento específico do game – que pode ser qualquer coisa: um coletável, uma certa pontuação, um determinado lugar, uma passagem, um encontro, o transcorrer do tempo etc. –, isso é áudio dinâmico. Se o ritmo, o volume, o timbre, o tom ou a mixagem de uma música muda por conta desse evento, isso também é áudio dinâmico. É o “Áudio (música ou SFX [sound effects, ou efeitos sonoros]) que reage (por inicialização ou modificação) a inputs do jogador ou a mudanças no ambiente do jogo.” (PASSOS; FORNARI, 2021b, n.p.).

Os rudimentos do áudio dinâmico surgiram no game Frogger (WEAVER, 2019, n.p.), lançado para arcade pela Konami em 1981. Era algo bem simples: quando o personagem atingia o safe point (o ponto seguro onde o personagem deve chegar para ficar a salvo do perigo) no topo da tela, a música mudava. Sim, algo bem básico, quase trivial, mas que iniciava um oceano de possibilidades. Afinal, diferentemente de outras mídias, nas quais o áudio é, digamos, “estático” – ou seja, que nunca se altera, como em um filme, em que os sons nunca se alteram mesmo que você assista várias vezes o filme –, os games possuem essa capacidade “mágica” de alterar o áudio conforme as ações do jogador ou os eventos do game, o que deixa tudo mais... dinâmico e interativo,¹ conforme o próprio nome sugere.


Os usos são muitos e variados, e dependem da criatividade e das intenções conjuntas dos desenvolvedores e compositores. O áudio dinâmico permite, por exemplo, estender a capacidade narrativa dos games (PASSOS, 2022), já que a música e os efeitos sonoros podem sugerir, contar ou antecipar algo (PASSOS; FORNARI, 2021a) somente no momento correto, de acordo com a ação do jogador, o que proporciona inúmeros  resultados expressivos sobre a maneira como os jogadores formam expectativas relacionadas aos sons de um game e como essas expectativas podem suscitar respostas emocionais – tensão, atenção, euforia, pesar, alegria etc. –, conforme a teoria ITPRA² (Imaginação, Tensão, Predição, Reação e Avaliação) proposto por David Huron (2006). E o mais interessante é que isso tudo ocorre em situações e momentos diferentes a cada vez que o game é jogado. Incrível, não?

Já falamos aqui do Super Mario World (aliás, costumo citar esse game por considerá-lo uma obra-prima dos games). Nesse game, quando o jogador encontrava o ovo do Yoshi e montava no bicho, a música se alterava sutilmente e passava para um ritmo mais tribal e com uso de timbres de percussão semelhantes a bongôs. Isso trazia um clima mais “selvagem” para o game, já que agora você estava montado em um pequeno dinossauro. Tudo a ver, não?

O áudio dinâmico pode ser dividido em três tipos, de acordo com seus usos (PASSOS; FORNARI, 2021b).:

  1. Áudio interativo: responde a comandos estritamente relacionados às ações diretas do jogador, como um som de pulo ou disparo de arma.

  2. Áudio adaptativo: adaptam-se à narrativa do game e vão além dos simples gatilhos acionados pelos comando do jogador (áudio interativo), com uso de parâmetros que não envolvem o controle direto do jogador, como a situação global do game, relações entre objetos e criaturas no ambiente, número de inimigos, intensidade dos acontecimentos, ação e estado do personagem etc.

  3. Áudio procedural: não é pré-gravado, mas gerado por algum processo dinamicamente parametrizável em tempo real com certo grau de indeterminação, como os algoritmos (FARNELL, 2010).

Em relato concedido a Jeannie Novak (2017, p. 294) para o livro Desenvolvimento de Games, o compositor e tecnólogo musical David Javelosa diz que “Como diferentes temas são associados a cenas específicas ou à aparição de personagens, na prática o jogador desempenha um papel inconsciente na reprodução do arranjo”. No mais-do-que-extraordinário game Skate 3 (Electronic Arts, cadê o Skate 4, hein?! O último já saiu faz tempo, em 2010!), por exemplo, o ritmo da música se altera drasticamente conforme você acerta manobras e também de acordo com a complexidade delas. A trilha sonora é controlada pelo desempenho do jogador. Se você erra e cai algumas vezes seguidas, a música para. Se volta a acertar, a música volta a ser reproduzida, com poucos instrumentos e em ritmo lento, e vai ficando mais complexa, com mais instrumentos, e mais rápida conforme o jogador acerta sequências de manobras de alta pontuação. Isso contribui em larga escala para a motivação e desempenho do jogador, ou seja, o áudio está profundamente atrelado ao design do game, à jogabilidade, à imersão. Nem de longe a música é apenas um acessório estético para o game, como já comentamos em outro artigo aqui no Blog C4.


Tal recurso utilizado no Skate 3 se chama ressequenciamento horizontal (SCHIEFER, 2016), que consiste em reordenar segmentos musicais pré-compostos de música de acordo com a escolha ou desempenho do jogador. Isso também é onipresente no ótimo Bastion (Supergiant Games, 2011), no qual a narração dos acontecimentos se dá em tempo real, conforme as decisões do jogador. Já a reorquestração vertical é a técnica de alterar a mixagem ou andamento, por exemplo, de um loop musical em relação às decisões do jogador (PHILLIPS, 2014; ZLOBIN, 2016). Trata-se da utilização de diversas pistas de áudio sincronizadas entre si, cada qual com a gravação de um instrumento ou um conjunto de instrumentos que fazem parte de uma música. “Tocados todos juntos, ouvimos a mixagem completa incorporando toda a composição musical. Tocadas separadamente, ouvimos submixagens que ainda são satisfatórias e divertidas por si mesmas.” (PHILLIPS, 2015, n.p.), e assim as partes desse todo podem ser “ligadas” ou "desligadas" conforme os acontecimentos no game, como ocorre no Skate 3.


As possibilidades de utilização do áudio dinâmico são muitas. Logo, sua complexidade na implementação de um game também pode ser elevada. Tanto que existem softwares específicos, chamados middlewares,³ como o Fmod ou o Wwise, para que o próprio compositor ou designer de som faça a programação dos eventos de áudio para o game, o que permite maior controle por parte dos profissionais de áudio e, consequentemente, maior qualidade para o áudio do game.

Para fechar este texto e exemplificar ainda mais o conceito de áudio dinâmico, recomendo o Sound Shapes (Queasy Games, 2012), um game que, por ser musical, é um ótimo representante do incrível recurso de áudio interativo.



Notas:

¹ “Interativa porque o jogador não é apenas um espectador passivo diante de uma narrativa que nunca se altera – ou seja, linear –, mas um espectador que interage com a história, toma decisões e, dependendo do game, é capaz de conduzir a história de acordo com as suas intenções.” (PASSOS, 2022, n.p.).

² “() cinco sistemas de respostas emocionais relacionados à expectativa. Cada sistema de resposta serve a uma função biológica diferente. O propósito da resposta da imaginação é motivar um organismo a se comportar de maneira a aumentar a probabilidade de resultados benéficos futuros. O objetivo da resposta à tensão é preparar um organismo para um evento iminente, adaptando a excitação e a atenção para corresponder ao nível de incerteza e importância de um resultado iminente. O objetivo da resposta de predição é fornecer incentivos positivos e negativos que encorajem a formação de expectativas precisas. O objetivo da resposta de reação é abordar uma possível situação de pior das hipóteses, gerando uma resposta de proteção imediata. O objetivo da resposta de avaliação é fornecer reforços positivos e negativos relacionados ao valor biológico de diferentes estados finais. Todos esses objetivos são biologicamente adaptáveis.” ([] five expectation-related emotion response systems. Each response system serves a different biological function. The purpose of the imagination response is to motivate an organism to behave in ways that increase the likelihood of future beneficial outcomes. The purpose of the tension response is to prepare an organism for an impending event by tailoring arousal and attention to match the level of uncertainty and importance of an impending outcome. The purpose of the prediction response is to provide positive and negative inducements that encourage the formation of accurate expectations. The purpose of the reaction response is to address a possible worst-case situation by generating an immediate protective response. The purpose of the appraisal response is to provide positive and negative reinforcements related to the biological value of different final states. All of these goals are biologically adaptive.) (HURON, 2006, 15).

³ Middleware é um software de computador que fornece serviços para softwares aplicativos além daqueles disponíveis pelo sistema operacional.


REFERÊNCIAS:

FARNELL, Andy. Designing sound. Cambridge, MA, USA: MIT Press, 2010.

HURON, David. Sweet anticipation: music and the psychology of expectation. Cambridge (EUA): MIT Press, 2006.

NOVAK, Jeannie. Desenvolvimento de games. Trad. Pedro Cesar de Conti. São Paulo: Cengage Learning, 2017.

PASSOS, Leonardo J. Porto; FORNARI, José. Música, linguagem e videogames: um estudo sobre suas contribuições, correlações e confluências. Art Research Journal, v. 8, n. 1, ago. 2021a. ISSN: 2357-9978. DOI: https://doi.org/10.36025/arj.v8i1.24464.

PASSOS, Leonardo Porto. Áudio e imersão de mãos dadas nos games. Blog C4, Campinas: Nics; Unicamp, 8 abr. 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em: <https://unicampc4.blogspot.com/2022/04/audio-e-imersao-de-maos-dadas-nos-games.html>.

PASSOS, Leonardo Porto; FORNARI, José. A profícua relação entre Pure Data e áudio para games. In: SBGAMES, 20., 18 a 21 out. 2021, Gramado/RS. Anais…: Art & Design Track – Short Papers. Porto Alegre/RS: Sociedade Brasileira de Computação, 2021b. ISSN: 2179-2259. Disponível em: <https://www.sbgames.org/proceedings2021/ArtesDesignShort/218203.pdf>.

PHILLIPS, Winifred. A composer’s guide to game music. Cambridge: The MIT Press, 2014.

PHILLIPS, Winifred. Arrangement for vertical layers pt. 1. Game Developer, Audio, Sep. 29, 2015. Disponível em: <https://www.gamedeveloper.com/audio/arrangement-for-vertical-layers-pt-1>. Acesso em: 5 maio 2022.

SCHIEFER, Thiago. Compondo música para games, pt. 2: camadas verticais e ressequenciamento horizontal. Academia de Composição, 19 dez. 2016. Disponível em: <http://academiadecomposicao.com/2016/12/19/musica-para-games-pt-2-camadas-verticais-e-ressequenciamento-horizontal-part-thiago-adamo/>. Acesso em: 5 maio 2022.

WEAVER, David. The history of audio and music in video games. Abbey Road Institute, Blog, Jan. 8, 2019. Disponível em: <http://abbeyroadinstitute.com.au/blog/history-audio-music-video-games/>. Acesso em: 5 maio 2022.

ZLOBIN, Denis. Adaptive music in competitive games. Game Developer, Audio, Nov. 29, 2016. Disponível em: <http://www.gamedeveloper.com/audio/adaptive-music-in-competitive-games>. Acesso em: 5 maio 2022.


Como referenciar este artigo:

PASSOS, Leonardo Porto. Áudio dinâmico: o coringa dos games no uso de música e efeitos sonoros. Blog C4, Campinas: Nics; Unicamp, 6 maio 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em: <http://unicampc4.blogspot.com/2022/05/audio-dinamico.html>.