Uma breve história sonora dos games - parte 4

Vinicius Yglesias

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Na terceira parte deste artigo, observamos, no período de 1985 a 1995, aproximadamente, a preocupação das desenvolvedoras Sega e Nintendo com a construção de uma estética sonora própria por ambas as empresas em seus games. A Sega, com timbres eletrônicos mais próximos dos sintetizadores, e a Nintendo buscando timbres cada vez mais próximos aos naturais.

Esta dicotomia no uso do áudio pelas desenvolvedoras traz um paralelo curioso entre o áudio de games do período e a música eletroacústica europeia surgida na década de 1940, na qual, de um lado, havia a elektronische musik alemã, que trabalhava exclusivamente com sons sintetizados, e do outro, a musique concrète francesa, que compunha exclusivamente a partir da manipulação da gravação de sons naturais (SANTAELLA, 2019). Falei mais detalhadamente desse paralelo em um artigo anterior aqui no Blog C4.

No final do século XX, a maior fidelidade e qualidade sonora que chegava aos games vinha com o preço de perda de espaço de processamento para seus outros aspectos, fazendo com que os desenvolvedores ou sacrificassem o caráter interativo do áudio, limitando-se a loops musicais mais simples, ou sacrificassem parte dessa fidelidade compondo com o protocolo MIDI, que por serem arquivos bem menores que os de áudio, permitia uma programação com maior liberdade em relação ao caráter dinâmico do áudio, embora menos fiel a instrumentos acústicos (ROVERAN, 2017).

As inovações tecnológicas do final do século XX e início do século XXI também abriram maiores possibilidades na parte do áudio para games. O gênero do survival horror trazia para o áudio dos games a incorporação do “ruído” (sons tradicionalmente considerados não musicais) como elemento composicional, assim como a utilização do silêncio como gerador de tensão. (SWEET, 2015).

Outra grande melhoria em relação ao áudio para games veio com o Playstation 2, da Sony, pois o console possuía maior espaço de processamento, abrindo a possibilidade de maneiras cada vez mais complexas de utilização do áudio em seus games, tanto em relação às músicas quanto na criação de “paisagens sonoras virtuais” cada vez mais dinâmicas e mais próximas de sons do mundo real (ROVERAN, 2017). Dessa forma, a restrição de espaço do Playstation 1, console anterior da empresa, deixou de se tornar um problema, já que não era mais necessário escolher entre fidelidade e dinamismo.

Entretanto, essa possibilidade de aproximação do mundo virtual de alguns games com o mundo real iniciada na década de 1990 e rapidamente potencializada na década de 2000, tornou a fronteira entre paisagem sonora real e virtual mais difusa, tornando a utilização do conceito de Schafer (2011) potencialmente ambígua quando utilizado para tratar dessa mídia.

Essa ambiguidade pode ser observada no debate acadêmico sobre o tema da paisagem sonora em ambientes virtuais, onde essa mesma expressão possui definições diversas, seja como a totalidade dos arquivos de áudio de um game (JÄRVINEN, 2002; 2003; BARARTÈ; LUDOVICO, 2013; HO; CHUNG; LIN, 2019), seja como apenas seus sons diegéticos (MERRINER, 2019; CAMARGO, 2018).

Para games como Super Mario World, por exemplo, é sempre clara a diferença entre a paisagem sonora do game, ou seja, os arquivos de áudio reproduzidos pela mídia, e a paisagem sonora do mundo real, pois ambos possuem características estéticas e tímbricas bem definidas. Enquanto o áudio dos games até aproximadamente 1995 se caracteriza pela estética do chiptune, resultado da limitação de canais e timbres disponíveis, a paisagem sonora real possui toda a complexidade sonora que no período era inviável implementar nos games devido a essas limitações.

Entretanto, em games mais realistas, como Metal Gear Solid 4, de 2008, é possível pensar nos sons do game não apenas como uma paisagem sonora, ou seja, como uma porção de um ambiente sonoro mais amplo, mas é possível considerar os sons do game como todo o ambiente sonoro, e focar porções ainda mais específicas desse ambiente para tratá-los como paisagem sonora.


O vídeo mostrado acima é um desses exemplos. Auditivamente, as sonoridades escutadas possuem as mesmas características que um ambiente sonoro real possuiria, entretanto, estão relacionadas ao mundo virtual do game. Esse fator torna o estudo de paisagens sonoras no contexto de games mais complexo, pois a delimitação do termo passa a apresentar novas questões, pois na interação com games com esse nível de mímese da realidade, o ato de se engajar em um game torna-se não mais uma fuga para um outro mundo perceptualmente distante do real, mas sim uma indicação de um possível desejo de interação com outras instâncias do próprio mundo real, a qual em situações normais, os jogadores não teriam acesso ou seria arriscado demais, reforçando a ideia de jogos (nesse caso, os jogos eletrônicos, ou games) como “simulação segura da realidade” (FORNARI, 2022).

Buscando delimitar uma linha divisória clara entre os momentos em que é considerado como campo de estudos a paisagem sonora do ambiente virtual, eu, Camargo e Fornari (2022, no prelo) propusemos, em artigo submetido e apresentado no Simpósio Brasileiro de Jogos e Entretenimento Digital (SBGames) deste ano, a utilização do termo “ambiente sônico”, que se refere apenas aos sons diegéticos responsável pela descrição do mundo virtual. A música extradiegética não se inclui no termo, pois, em geral, não gera ambiguidade em relação à sua associação com um mundo virtual de um game.

Nesse sentido, é possível delinear até mesmo aplicações pedagógicas com esse objetivo em mente. Os estudos da paisagem sonora anteriores à revolução digital já iniciados por Schafer (2011) em “A Afinação do Mundo”, podem, nos dias atuais, ter representações práticas e interativas em ambientes virtuais que os simulem, tornando as descrições literárias trazidas pelo autor palpáveis de maneira mais lúdica e imersiva. Um exemplo prático que se aproxima disso é a franquia Assassin’s Creed (AC), na qual cada game se passa em um local e período histórico distinto, contando inclusive com personagens históricos em seu enredo, como Júlio César e Cleópatra, em AC Origins, Leônidas, em AC Odyssey, e Ivarr em AC Valhalla, entre muitos outros.





Como dito no título, este foi apenas um breve histórico do áudio em games, o qual teve como objetivo apresentar algumas relações com o conceito de “paisagem sonora” conforme originalmente definido por Schafer com estudos de psicologia da música e musicologia cognitiva. Tratando-se de uma pesquisa em andamento, mais resultados serão divulgados tanto aqui no Blog C4 quanto em outros veículos acadêmicos.


Referências

BARATÈ, Adriano. LUDOVICO, Luca A. (2013). Serious Games for Music Education: A Mobile Application to Learn Clef Placement on the Stave. Proceedings of the 5th international Conference on Computer Supported Education (CSEDU-2013), pages 234-237. ISBN: 978-989-8565-53-2.

CAMARGO, Fernando Emboaba de. (2018). Interatividade e Narratividade sonora nos games. Tese de Doutorado. Universidade Estadual de Campinas, 2018. Área de concentração em Música: Criação, Teoria e Prática. Instituto de Artes. Campinas. 188p.

FORNARI, José. "Sobre a classificação de jogos - parte 1". Blog C4, Campinas: Nics; Unicamp, 07 junho 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em: <https://unicampc4.blogspot.com/2022/06/sobre-classificacao-de-jogos-parte-1.html>.

HO, Pei-Chi. CHUNG, Szu-Ming. LIN, Hui-Guan. (2013). Soundscape Design in an AR/VRAdventure Game. European Conference on Games Based Learning.

JÄRVINEN, Aki. (2002). Gran Stylissimo: The Audiovisual Elements and Styles in Computer and Video Game. Proceedings of Computer Games and Digital Cultures Conference,ed. Frans Mäyrä. Tampere: Tampere University Press.

JÄRVINEN, Aki. (2003). The Elements of Simulation in Digital Games: System, representation and interface in GRAND THEFT AUTO: VICE CITY. In: Dichtung Digital. Journal für Kunst und Kultur digitaler Medien. Nr. 30, Jg. 5, Nr. 4, S. 1–20. DOI: https://doi.org/10.25969/mediarep/17628.

MERRINER, Ashley. (2017). Aural Abjections and Dancing Dystopias: Sonic Signifiers in Video Game Horror. Dissertação de Mestrado. School of Music and Dance of University of Oregon.

ROVERAN, Luiz Fernando Valente. Música e adaptabilidade no videogame: procedimentos composicionais de música dinâmica para a trilha musical de jogos digitais. Dissertação de Mestrado - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes. Campinas, 2017.

SANTAELLA, Lucia. Matrizes da linguagem e pensamento: sonora visual verbal: aplicações na hipermídia / Lucia Santaella - 3. Ed. - São Paulo: 5. Reimp., 2019 - Iluminuras: FAPESP, 2005.

SCHAFER, R. Murray. (2011). A afinação do mundo: uma exploração pioneira pela história passada e pelo atual estado do mais negligenciado aspecto do nosso ambiente: a paisagem sonora / R. Murray Schafer; tradução Marisa Trench Fonterrada. – 2.ed. – São Paulo: Editora Unesp. 382p.: il

SWEET, Michael. Writing Interactive Music for Video Games. New York: Pearson Education, 2015. 512 p.

YGLESIAS, Vinicius. CAMARGO, Fernando Emboaba de. FORNARI, José. Da Paisagem Sonora ao Ambiente Sônico: uma proposta taxonômica para o estudo de paisagens sonoras em games. In: SBGAMES, 22., 2022, Natal. Anais eletrônicos…: Trilha Artes e Design – Full Papers. Natal: Sociedade Brasileira de Computação, 2022. No prelo.


Como referenciar este artigo:

YGLESIAS, Vinicius. Uma breve história sonora dos games - parte 4. Blog C4, Campinas: Nics; Unicamp, 15 nov. 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em: https://unicampc4.blogspot.com/2022/11/uma-breve-historia-sonora-dos-games_0826438071.html