Simulações de paisagens sonoras históricas na franquia de games Assassin’s Creed – parte 3

Vinicius Yglesias

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Nos artigos anteriores (disponíveis aqui e aqui) tratei das representações de uma paisagem sonora medieval de Assassin’s Creed (AC) até a paisagem sonora de Constantinopla em Assassin’s Creed Revelations. Este artigo trata dos games seguintes da franquia, intitulados Assassin’s Creed III e Assassin’s Creed IV: Black Flag, que tratam da história dos personagens da família Kenway, novos protagonistas históricos do game.

O game AC III e se passa durante dois eventos da história dos EUA. A princípio, durante o final da French and Indian War, em 1963 (BORNEMAN, 2006), e em seguida durante o período da revolução estadunidense (SHAW, 2015), aproximadamente entre os anos de 1765 e 1781, período em que os EUA lutavam pela independência do Reino Unido. Ao longo do game, o jogador controla dois novos protagonistas históricos, Haytham Kenway, Grão-Mestre da Ordem dos Templários (o cargo mais alto da instituição), e Ratonhnhaké:ton (posteriormente chamado de Connor Kenway), filho de Haytham com Kaniehti:io, uma personagem do game. Enquanto os personagens apresentados são fictícios, a população nativa representada no game, chamada de Kanien’kehá:ka, de onde se originam Ratonhnhaké:ton e Kaniehti:io existe no mundo real e são uma das seis nações que fazem parte dos Haudenosaunee (DEER, 2016), ou Confederação Iroquois das Seis Nações (JACOBS, 2019). Dessa forma, além dos eventos relativos à revolução estadunidense, o enredo também abarca, ainda que de maneira tangencial, a luta dos Kanien’kehá:ka pela proteção de suas terras dos colonos britânicos.


Ratonhnhaké:ton (Connor) à esquerda e Haytham Kenway à direita



Kaniehti’io


Devido ao contexto histórico apresentado, o game ocorre em momentos bastante distintos, o que por consequência traz paisagens sonoras virtuais também mais diversas. Em um primeiro momento o jogador controla Haytham Kenway, iniciando no Royal Theatre, Drury Lane, o mais antigo ainda em uso atualmente (CARTER, 1967), no qual durante a primeira missão a paisagem sonora virtual escutada pelo jogador é preenchida majoritariamente pela ópera The Beggar’s Opera, de John Gay, apresentada pela primeira vez em 1728 (MCINTOSH, 1974). A ópera, nesse contexto, adquire características de “som fundamental” (SCHAFER, 2011, p. 26) durante esse primeiro momento do game, termo que embora Schafer atribua apenas a sons de geografia, como água e vento, ou sons de animais como pássaros e insetos, no contexto desse momento do game a ópera torna-se uma sonoridade constante sobre a qual ocorrem os eventos do game.


Após esta primeira missão, Haytham viaja a Boston em busca de um Pedaço do Éden que supostamente estaria escondido nas terras dos Kanien’kehá:ka, razão pela qual ele ajuda Kaniehti:io nesses primeiros momentos do game. Os locais que são apresentados ao jogador em Boston são diversos, desde o porto local, onde se intercalam as vozes de marinheiros, comerciantes e suas ferramentas de trabalho, até tavernas com músicas animadas ou fazendas nas quais Kanien’kehá:ka são forçados a trabalhar sob palavras de ordem dos guardas locais.

Após Haytham encontrar o que buscava com a ajuda de Kaniehti:io, o jogador passa a controlar Ratonhnhaké:ton, cerca de 9 anos depois no enredo do game. O jogador assume o controle do personagem em três períodos de sua vida, a princípio durante sua infância, quando encontra-se com os colonos pela primeira vez no game; o segundo período é durante a adolescência, quando inicia o treinamento com o ex membro da Ordem dos Assassinos Achiles Davenport, personagem fictício do game que lhe dá o nome de Connor para que seja melhor aceito nas cidades do game; e por fim, já durante a vida adulta, atua ativamente, como membro da Ordem dos Assassinos, tanto em eventos da revolução estadunidense quanto na luta dos Kanien’keha:ka para evitar que seu povo perca suas terras.



Achiles Davenport


Em cada período da vida de Ratonhnhaké:ton (ou Connor), é possível destacar alguns aspectos diversos das paisagens sonoras virtuais destes. Durante sua infância, que se passa na vila de seu povo, é possível escutar a representação do que seriam os marcos sonoros dessa população, desde sua música, que atua ambiguamente como trilha musical e ambiente sônico (CAMARGO, 2022) no game, até o idioma nos diálogos, que são sempre no idioma original do povo ao invés do inglês. Conforme descrito por Venables (2012), Teiowí:sonte Thomas Deer, consultor da equipe criativa da Ubisoft para assuntos relacionados aos Kanien'kehá:ka, destaca o esforço da desenvolvedora em apresentar a cultura dos nativos de maneira tão fidedigna quanto possível no game. Além disso, apesar da distância temporal, Akwiratékha Martin, outro dos consultores, afirma que houveram poucas alterações entre o vocabulário do idioma no período do game para os dias atuais.


Já durante a adolescência e vida adulta de Ratonhnhaké:ton, grande parte dos locais frequentados no game, assim como suas paisagens sonoras, são similares aos de Haytham, chegando inclusive a trabalharem juntos em determinados momentos do game. O maior destaque, especialmente durante a vida adulta de Ratonhnhaké:ton, está nas batalhas marítimas introduzidas neste game, trazendo com maior destaque o ambiente e as sonoridades do mar para o game, elementos destacados no game seguinte da franquia.

O próximo game da franquia, intitulado AC IV: Black Flag, embora tenha sido lançado após AC III, traz a história do pai de Haytham, chamado Edward Kenway. Passando-se no final da considerada “Era de Ouro” da pirataria, aproximadamente entre 1690 e 1730 (KUHN, 2010), Edward era um galês de classe baixa que buscava ser um pirata de renome. As principais cidades deste game são Havana, Kingston e Nassau, porém o maior destaque do game são os momentos em alto-mar.


Entre as batalhas de canhões, saques de outros navios, tempestades, e outros eventos que o jogador pode se deparar no mar aberto de AC IV: Black Flag, é possível escutar os marinheiros do navio cantando canções acapella, também chamadas de sea shanties, que novamente adquirem características de sons fundamentais da paisagem sonora virtual do game durante as viagens marítimas, integrando a trilha musical ao ambiente sônico do game. Em diversos locais, há itens colecionáveis (itens opcionais, sem influência no enredo principal) que podem ser encontrados os quais representam uma nova música. Dessa forma, cada item encontrado representa um novo sea shanty aleatório que pode ser cantado pela tripulação durante as viagens marítimas.



De acordo com Catenella (2017), os sea shanties surgiram como uma ramificação das canções de trabalho. Canções em contextos de trabalho estão presentes em diversos povos seja para entretenimento ou para comunicação de mensagens codificadas em um contexto de escravidão, por exemplo (FONSECA, 2015). Rose (2012) e Risko (2015) afirmam que as sea shanties eram importantes para ditar o ritmo para operar as velas dos navios. Em AC IV: Black Flag, entretanto, elas são usualmente apresentadas somente como um elemento artístico do game para remeter ao contexto, visto que não é possível observar relação direta de seus ritmos com ações dos marinheiros durante a navegação. Apesar disso, são um dos elementos mais característicos da paisagem sonora virtual desse game.


Referências Bibliográficas

BORNERMAN, Walter R. The French and Indian War: deciding the fate of North America. New York: HarperCollins Publishers, 2006.

CARTER, Rand. The Drury Lane Theatres of Henry Holland and Benjamin Dean Wyatt. Journal of the Society of Architectural Historians, v. 26, no. 3, pp. 200-216, 1967.

CATENELLA, Pallas. Piratical Debauchery, Homesick Sailors, and Nautical Rhythms: The Influence of Sea Shanties on Classical Music. Honors in Music, Wellesley College. Wellesley, MA,  2017.

DEER, Sandra. An Investigation of the Role of Legends and Storytelling in Early Childhood Practices in a Kanien’kehá:ka (Mohawk) Early Childhood Facility. in education, v. 22, no. 1, 2016.

FONSECA, Edilberto José de Macedo. Cantos de trabalho: modos e modas na atualidade. In: BRASIL, Sonora. Sonoros ofícios – cantos de trabalho. Rio de Janeiro: Sesc | Serviço Social do Comércio, 2015.

JACOBS, Curran Katsi’sorókwas. Two-Row Wampum Reimagined: Understanding the Hybrid Digital Lives of Contemporary Kanien’kehá:ka Youth. Studies in Social Justice, v. 13, no. 1, pp. 59-72, 2019.

KUHN, Gabriel. Life Under the Jolly Roger: Reflections on Golden Age Piracy. Oakland: PM Press, 2010.

MCINTOSH, William A. Handel, Walpole, and Gay: The Aims of The Beggar's Opera. Eighteenth-Century Studies, v. 7, no. 4, pp. 415-433, 1974.

RISKO, Sharon Marie. 19th Century sea shanties from the capstan to the classroom. Dissertação (Dissertação de Mestrado). Department of Music, Cleveland State University, 2015.

ROSE, Kelby. Nostalgia and Imagination in Nineteenth-century Sea Shanties. The Mariner’s Mirror, v. 98, no, 2, 147-160, 2012.

SCHAFER, R. Murray. A afinação do mundo: uma exploração pioneira pela história passada e pelo atual estado do mais negligenciado aspecto do nosso ambiente: a paisagem sonora / R. Murray Schafer; tradução Marisa Trench Fonterrada. – 2.ed. – São Paulo: Editora Unesp, 2011. 382p.: il

SHAW, Adrienne. The Tyranny of Realism: Historical accuracy and politics of representation in Assassin’s Creed III. Loading…, v. 9, no. 14, pp. 4-24, 2015.

VENABLES, Michael. The Awesome Mohawk Teacher and Consultant Behind Ratonhnhaké:ton. Forbes. Disponível em:

https://www.forbes.com/sites/michaelvenables/2012/11/25/the-consultants-behind-ratonhnhaketon/?sh=5b863f6865fe. Acesso em: 26 abr. 2023.


Como referenciar este artigo

YGLESIAS, Vinicius. Simulações de paisagens sonoras históricas na franquia de games Assassin’s Creed  – parte 3. Blog C4, Campinas: Nics; Unicamp, 27 jun. 2023. ISSN: 2764-5754. Disponível em: https://unicampc4.blogspot.com/2023/06/simulacoes-de-paisagens-sonoras_0271786803.html