Vinicius Yglesias
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Este artigo trata-se da terceira e última parte do tema da relação entre música e efeitos sonoros, ao passo que a parte 1 e parte 2 podem ser encontradas nos respectivos links. Nesta última parte, mostrarei, a partir de alguns games, maneiras de como essa relação pode ser abordada nessa mídia. Os games são uma mídia especialmente interessante para esse tipo de estudo, pois muitos deles possibilitam ao jogador algum nível de controle dos arquivos de áudio de forma independente, o que faz com que os eventos que descreverei ao longo deste artigo também possam ser rapidamente testados pelo leitor.
Em meu artigo sobre a relação entre a música eletroacústica e o áudio para games, já comentei sobre o som da água corrente na fase Upstream de Crash Bandicoot, o qual está incluído na faixa de música do game, fator que pode ser confirmado quando retiramos o volume da música nas opções do game e mantemos apenas os efeitos sonoros, pois ao fazer isso, já não escutamos mais esse mesmo som de água, o que indica que o áudio do riacho estava incluído na faixa de música, a qual teve seu volume retirado. Entretanto, isso ocorre apenas em sua versão original, de 1997, já que na versão remasterizada, lançada 20 anos depois, o mesmo som da água corrente dessa vez encontra-se na faixa de efeitos sonoros, podendo ser escutado mesmo se retirarmos o volume da música.
É difícil ter certeza se essa alteração foi motivada por uma decisão estética, por limitação tecnológica da época ou mesmo por diferenças criativas entre Josh Mancell, compositor da música original do game, e a Vicarious Visions, empresa responsável pelos arranjos utilizados nas músicas mais recentes da remasterização do game (e que especula-se não terem agradado em nada o compositor das trilhas originais). Entretanto, para os propósitos do presente artigo, acredito que essa mudança indica como a diferença entre música e efeitos sonoros nem sempre é óbvia. Outro fator que demonstra essa divisão é que na mesma fase os sons de comunicação animal (elefante, pássaros, macacos etc) continuam presentes na faixa de música.
Já em Outer Wilds, um dos games sobre o qual mais escrevo aqui no blog, a divisão entre música e efeitos sonoros, assim como definia Gorbman (1987), está diretamente relacionada ao espaço diegético do som. A música extradiegética tocada no menu inicial do game está incorporada na pista de música, enquanto uma variação dessa mesma música, mas que dessa vez é tocada no espaço diegético, durante uma brincadeira de esconde-esconde (sobre a qual também já escrevi aqui no blog), encontra-se na pista de efeitos sonoros, tornando-se inaudível ao retirarmos o volume dessa pista; fato que não é uma surpresa ao olharmos a descrição da pista de música do game, onde os desenvolvedores escrevem justamente que ela se refere a qualquer música não diegética.
Além disso, essa relação intrínseca da organização do áudio de um game com o espaço diegético no qual esses sons se encontram pode ser observada tanto em games indies, que tratam-se de games desenvolvidos por equipes pequenas (LEMES, 2009), como é o caso de Outer Wilds, como em games Triple A (ou AAA), games de alto orçamento que conta com centenas de pessoas na equipe de desenvolvimento, como é o caso de Marvel’s Spider Man, de 2018, publicado pela Sony, uma das maiores empresas no mercado de games atualmente. Assim como em Outer Wilds, no game publicado pela Sony podemos observar que todo som diegético é tratado como efeito sonoro quando, ao tocar um Jazz em um rádio presente na casa de Peter Parker, personagem protagonista do game, ele também deixa de ser escutado ao retirarmos o volume da pista de efeitos sonoros do game.
Por fim, uma outra abordagem da relação entre música e efeitos sonoros em games pode ser encontrada em Grand Theft Auto V (GTA V), game no qual na maior parte das situações não há música, exceto quando entramos em um veículo, momento no qual podemos escutar seu rádio. Nem todas as estações do rádio tocam música o tempo todo; também é possível escutar programas de humor e comerciais, por exemplo. Entretanto, tudo é enquadrado dentro da faixa de música do game, da qual caso seja retirado o volume, o rádio torna-se inaudível, por mais que este faça parte da diegese do game.
Este artigo tentou destacar, por meio dos exemplos observados, como a definição de música, e por sua vez a de efeitos sonoros, longe de se tratar de um debate já concluído, ainda hoje possui variações na forma como é utilizada. Vimos que o áudio da água corrente na fase Upstream de Crash Bandicoot transitou de música, na definição de Schafer (2011) para efeito sonoro, na definição de Gorbman (1987). Já em Outer Wilds e Marvel’s Spider Man, vimos que qualquer som diegético foi considerado como efeito sonoro, enquanto o som do rádio de GTA V, independentemente da programação que estivesse sendo transmitida, era tratado como música.
Essas diferenças na abordagem da separação entre música e efeitos sonoros parecem apontar para a possibilidade da existência de critérios diversos na maneira em que a divisão é abordada, indicando que a questão do que define o que é utilizado como material musical ou como “efeito sonoro” pode estar relacionada a diferentes critérios, de acordo com a especificidade de cada projeto.
Referências
LEMES, David de Oliveira. Games independentes: fundamentos metodológicos para criação, planejamento e desenvolvimento de jogos digitais. São Paulo, 2009. 158 f. Monografia (Mestrado em Tecnologias da Inteligência e Design Digital) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
GORBMAN, Claudia. Unheard Melodies: narrative film music. [Livro] Londres: The British Film Institute, 1987.
SCHAFER, R. Murray. O ouvido pensante/R. Murray Schafer; tradução de Marisa Trench de O. Fonterrada, Magda R. Gomes da Silva, Maria Lúcia Pascoal; revisão técnica de Aguinaldo José Gonçalves. - 2.ed. - São Paulo: Ed. Unesp, 2011. 408p.
YGLESIAS, Vinicius. A música eletroacústica e o áudio para games: irmãos separados no nascimento?. Blog C4, Campinas: Nics; UNICAMP, 13 mai. 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em: https://unicampc4.blogspot.com/2022/05/a-musica-eletroacustica-e-o-audio-para.html
YGLESIAS, Vinicius. A íntima ligação entre música, jogo e cultura. Blog C4, Campinas: Nics; UNICAMP, 15 abr. 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em: <https://unicampc4.blogspot.com/2022/04/a-intima-ligacao-entre-musica-jogo-e.html>
Como referenciar este artigo:
YGLESIAS, Vinicius. A relação entre música e efeitos sonoros - parte 3. Blog C4, Campinas: Nics; Unicamp, 07 out. 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em: https://unicampc4.blogspot.com/2022/10/a-relacao-entre-musica-e-efeitos.html