Análise espectromorfológica da paisagem sonora do videogame LIMBO - parte 3

Vinicius Yglesias

viniciusyglesias.musico@gmail.com

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Nos artigos anteriores (parte 1 e parte 2), foi exposta a teoria espectromorfológica de Denis Smalley. Na primeira parte, observamos as classificações de tipologias espectrais, enquanto na segunda, vimos como o compositor classifica a morfologia desses tipos e quais movimentos a união de ambos é capaz de formar. Nessa terceira parte, será mostrada uma aplicação da teoria de Smalley na análise da paisagem sonora do videogame LIMBO.

LIMBO é um game 2D, do gênero plataforma e quebra-cabeças (ou puzzle, como o gênero é frequentemente chamado), lançado em 2010 pela desenvolvedora dinamarquesa Playdead. O game possui uma estética visual bastante particular para os dias atuais, um estilo minimalista e monocromático em tons de preto e branco. Inclusive o protagonista trata-se apenas da silhueta de um menino, na qual apenas duas luzes brancas representando seus olhos se destacam.


Cena do game Limbo, que apresenta o aspecto visual do game.

Fonte: https://store.steampowered.com/app/48000/LIMBO/?l=portuguese. Acesso em: 06 dez. 2022.



Da mesma maneira, a paisagem sonora do game busca reforçar essa estética, limitando-se à utilização apenas de sons de ambiente sônico na maior parte do game. A utilização de trilha musical, que compõe apenas cerca de 15 minutos da mais de 1 hora de duração do game, é reservada para momentos especialmente relevantes.

Martin Stig Andersen (2010), compositor e sound designer do game, afirma que a composição de música eletroacústica para mídias audiovisuais desafia a separação entre música e efeitos sonoros, dicotomia da qual tratei recentemente em artigo anterior aqui no Blog C4. Em LIMBO, esse mesmo desafio ocorre entre a separação do ambiente sônico do game e de outras sonoridades da paisagem sonora deste. A difusão dessa separação é reforçada pelo próprio compositor, quando afirma que mesmo que os sons utilizados sejam os mais simples, como os sons de passos, ele os toma como um som musical (SOLBERG, 2016)

 Um dos exemplos que considero mais emblemáticos da dificuldade dessa separação encontra-se em um puzzle que aparece aproximadamente na metade do game, no qual, ao pisar em um botão, o jogador deve rapidamente empilhar duas caixas antes que uma serra, ativada ao pisar esse botão, se aproxime do protagonista e o mate. O interessante em relação à paisagem sonora do game é que ao invés de Andersen colocar uma música de tensão para representar perigo ao jogador, o próprio som da serra é utilizado com essa função.



Do ponto de vista espectromorfológico, esse som trata-se de uma tipologia ruidosa de morfologia em estado de eflúvio. O movimento aparenta ser multidirecional, pois, embora seja possível perceber uma “similaridade variante” (FORNARI; MAIA JR; MANZOLI, 2007) no som, característica comum de uma paisagem sonora, não há um direcionamento claro devido ao caráter ruidoso do mesmo. Nesse contexto, esse som cumpre tanto a função de “ambiente sônico” (YGLESIAS, CAMARGO, FORNARI, 2022, no prelo) , ao representar a serra do cenário, quanto de “música de tensão”, em relação ao tempo limitado que o jogador tem para realizar a ação.

Em outro puzzle do game, pouco adiante, o jogador deve utilizar a gravidade do game para chegar ao próximo local. Ao pisar em um botão, a gravidade é invertida, e cerca de 5 segundos depois, ela volta ao normal automaticamente.

Durante esses 5 segundos, há um som semelhante a um “temporizador” para indicar ao jogador quando a gravidade vai voltar ao normal. Morfologicamente, esse som refere-se a diversos ataques-impulsos que percorrem todo o “continuum ataque-eflúvio” definido por Smalley, Gras e Aragão (2021), ou seja, inicia-se com ataques separados entre si que vão se tornando mais próximos até o tempo acabar e a gravidade voltar ao normal.


Nesse caso, não parece haver uma intenção musical tão nítida quanto no som de serra anterior, entretanto, é incerto se a fonte do som existe apenas no espaço extradiegético1, ou se pertenceria a algum equipamento existente no mundo virtual do game, já que é ativado ao apertar o botão existente no mundo virtual do game.

Por fim, o último exemplo que gostaria de trazer está na trilha musical do final do game. Na música tocada, chamada Gravity Jump, gostaria de destacar dois momentos. O primeiro deles é que o som de “temporizador” descrito anteriormente reaparece com um timbre diferente, bem mais grave, e está incorporado como uma espécie de ostinato da trilha musical, que aparentemente é completamente extradiegética. Por ser um ostinato que percorre todo o continuum ataque-eflúvio, chamo esse objeto sonoro de “ostinato morfológico” nesse contexto.

O segundo momento está relacionado à jogabilidade do game. Nesses momentos finais, a gravidade é alterada automaticamente sempre a cada 5 segundos, aproximadamente, quando o ostinato morfológico recomeça. Em um dado momento, há um bloco enorme sobre o qual o jogador deve passar que, sempre que a gravidade volta ao normal e esse bloco cai no chão, escutamos um som na trilha musical que pode ambiguamente ser relacionado tanto à trilha musical extradiegética quanto ao impacto da queda do bloco, reforçando a difusão entre música e efeitos sonoros que Andersen (2010) destaca e a qual já comentei em artigos anteriores.

Essa ambiguidade é reforçada ao escutarmos a versão de 2011 da trilha musical do game lançada digitalmente em formato de álbum. Na música Gravity Jump, há elementos ausentes na versão escutada durante o game, como uma introdução e a ausência de duas sonoridades que, no game, estão presentes sempre que o ostinato recomeça. Entretanto, o som associado à queda do bloco no game permanece ainda que sua contraparte visual não exista nessa versão.




Nos três últimos blogs expus parte da teoria espectromorfológica de Smalley, destacando três pontos-chave: 1. as tipologias espectrais, que incluem a nota, espectros harmônicos e inarmônicos; 2. morfologias, que tratam-se de ataques-impulsos separados, iteração, grão e estado de eflúvio; e por fim 3. movimentos gerados por suas combinações, que podem ser unidirecionais, bidirecionais, recíprocos, cíclicos, multidirecionais ou combinações destes.

Dessa forma, a análise de elementos da paisagem sonora de LIMBO apresentada a partir desse embasamento buscou demonstrar uma aplicação prática da teoria de Smalley (1986), e a partir de elementos encontrados nessa análise, destacar a complexidade perceptiva dos aspectos da paisagem sonora de um game. Enquanto há sonoridades que podem ser mais facilmente relacionadas ao ambiente sônico, como o som da serra, outras, como o “temporizador” ou o bloco caindo, são implementadas de maneira propositalmente mais ambígua.


Notas

1 Sons extradiegéticos são sons que existem apenas para o espectador/jogador, mas não para os personagens (CAMARGO, 2022).


Referências

ANDERSEN, Martin Stig. Electroacoustic Sound and Audiovisual Structure in Film. Disponível em: <https://econtact.ca/12_4/andersen_audiovisual.html>. Acesso em: 19 out. 2022.

CAMARGO, Fernando Emboaba de. (2018). Interatividade e Narratividade sonora nos games. Tese de Doutorado. Universidade Estadual de Campinas, 2018. Área de concentração em Música: Criação, Teoria e Prática. Instituto de Artes. Campinas. 188p.

FORNARI, José. MAIA JR., Adolfo. MANZOLLI, Jônatas (2007). Composição de Paisagens Sonoras Digitais Através da Síntese Evolutiva.

SMALLEY, Denis. Spectro-morphology and Structuring Processes. In: EMMERSON, Simon (ed.). The Language of Electroacoustic Music. The Macmillan Press Ltd, 1986.

SMALLEY, Denis. Espectromorfologia e Processos de Estruturação. Tradução de: GRAS, Germán E.; ARAGÃO, Thaís A. Espectromorfologia e Processos de Estruturação. Revista Vórtex, Curitiba, v.9, n.1, p. 1-38, 2021.

SOLBERG, Dan (2016). The mad science behind inside’s soundtrack. Disponível em: <https://killscreen.com/previously/articles/mad-science-behind-insides-soundtrack/>. Acesso em: 25 set. 2022.

YGLESIAS, Vinicius. CAMARGO, Fernando Emboaba de. FORNARI, José. Da Paisagem Sonora ao Ambiente Sônico: uma proposta taxonômica para o estudo de paisagens sonoras em games. In: SBGAMES, 22., 2022, Natal. Anais eletrônicos…: Trilha Artes e Design – Full Papers. Natal: Sociedade Brasileira de Computação, 2022. No prelo.


Como referenciar este artigo:

YGLESIAS, Vinicius. Análise espectromorfológica da paisagem sonora do videogame LIMBO - parte 3. Blog C4, Campinas: Nics; Unicamp, 13 dez. 2022. ISSN: 2764-5754. Disponível em: https://unicampc4.blogspot.com/2022/12/analise-espectromorfologica-da-paisagem_01462372599.html