Proposta taxonômica para as funções do áudio de games

Vinicius Yglesias

viniciusyglesias.musico@gmail.com

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No artigo de hoje, trato de algumas das funções do áudio de games e suas relações com a jogabilidade. De acordo com Medeiros (2015), a jogabilidade pode ser entendida como a maneira de se alcançar objetivos específicos de maneira satisfatória em um game. Devido à natureza interativa da mídia, o áudio dos games sempre possui algum nível de interatividade com as ações do jogador, como sons de pulo (FARIAS; IAZZETTA, 2020) ou de passos (HAMBLETON, 2020). Entretanto, este artigo aborda casos de games em que o áudio possui funções para além de apenas a resposta direta a um comando do jogador, com o objetivo de apresentar maneiras diversas com que o áudio pode ser utilizado em um game.

Para isso, é possível delinearmos uma proposta de taxonomia para tratar das sonoridades de um game a partir de sua função. Nos casos em que o som se trata apenas de uma resposta a um comando do jogador, como mencionado anteriormente, podemos chamá-los de sons “reativos”, visto que simplesmente reagem a um comando do jogador. Outras funções que proponho e explico a seguir são sons “direcionais”, “indicativos” e “compensatórios”.

Os games “musicais rítmicos”, conforme define Meneguette (2016, p. 195), como Guitar Hero, são alguns dos quais a relação do áudio com a jogabilidade é mais direta. Neles, o jogador deve pressionar determinado botão no momento correto para que a nota da guitarra seja escutada na música. A popularidade da franquia gerou diversos games similares, como Guitar Flash (MESSIAS et al., 2020), Rock Band (MILLER, 2009; TANENBAUM; BIZZOCCHI, 2009) e vBerimbau ou berimbau hero (FORNARI, 2010), protótipo de berimbau virtual desenvolvido em Pure Data (Pd) baseado na jogabilidade de Guitar Hero como uma homenagem ao game. Em casos como este, em que o áudio do game é diretamente atrelado à jogabilidade, podemos chamar de sons “direcionais”, baseado na descrição de “jogabilidade direcionada por áudio” que Martin Stig Andersen, compositor e sound designer do game Limbo, apresenta em relação ao áudio do game, conforme descrevi em artigo anterior. Nesse sentido, podemos considerar que são sons que direcionam a jogabilidade do game.



Outra função do áudio de games que podemos considerar é a que chamo de sons “indicativos”. Em meu segundo artigo para este blog, por exemplo, falei sobre o game Outer Wilds, que é descrito pelo diretor criativo Alex Beachum (2013, p. 4) como um game de “exploração direcionada pela curiosidade” (curiosity-driven exploration). Neste game, o protagonista explora um sistema solar fictício no qual há diversos segredos, e para encontrá-los ele conta com um equipamento chamado onduloscópio (signalscope), que o permite identificar diversos sinais sonoros (HAZEN, 2020), como instrumentos musicais, cápsulas de naves espaciais perdidas, entre outros. Nesse contexto, portanto, o uso do onduloscópio permite encontrar sons que indicam para o jogador possíveis segredos, razão pela qual chamo de sons indicativos.



Um elemento relevante nos sons indicativos em games é a espacialização sonora, especialmente em games do gênero First Person Shooter (FPS). Por meio dessa espacialização, é possível obter informações relevantes sobre o mundo virtual do game, como a localização de outros personagens relevantes (GRIMSHAW, 2007). É interessante destacar que neste gênero os sons de passos deixam de ser “reativos” e tornam-se, em geral, “indicativos”, visto que indicam o possível posicionamento de personagens inimigos e outros elementos relevantes do mundo virtual do game.

A espacialização sonora de sons indicativos também pode ser utilizada para sugerir uma direção ou objetivo, como na região de Lost Woods do game The Legend of Zelda: Ocarina of Time. Esta é uma região virtual do game em que há três caminhos, um à esquerda, um à direita e um em frente ao protagonista, e cada um destes se bifurca em mais três até que o protagonista chegue ao final da região. A trilha musical nesse momento do game transita do plano extradiegético (conceito explicado em artigo anterior) para o diegético, pois para o jogador saber qual dos três caminhos é o certo, deve escutar de qual direção está vindo a música e seguir por este caminho (FRITSCH, 2013). Ou seja, nesse exemplo, a trilha musical indica ao jogador o caminho correto a ser seguido.

Por fim (e talvez esta seja a função mais comum), o áudio de um game pode ser definido como “compensatório” quando é utilizado para indicar uma ação bem-sucedida no game, característica da mídia que se mantém desde os seus período dos jogos eletro-mecânicos como o Pinball (COLLINS, 2016). O exemplo que gostaria de citar para esta função é o game Phoenix Wright: Ace Attorney devido a uma certa inversão de expectativas em relação ao que é comum na mídia.

Em Phoenix Wright: Ace Attorney, o protagonista é o advogado Phoenix Wright e o objetivo do game é defender os clientes de falsas acusações em diversos casos. Enquanto interroga testemunhas, o jogador deve selecionar uma evidência que demonstre que a testemunha esteja mentindo em sua fala para que possa evidenciar a falsidade na acusação.

O interessante do uso do áudio no game é que ao invés de utilizar de um som compensatório caso o jogador acerte a evidência, ocorre o oposto: quando o jogador escolhe a evidência correta, todo o áudio do game é silenciado por alguns instantes, possivelmente para gerar um clima de tensão em relação à mentira descoberta, fator que podemos associar ao sistema de Tensão do modelo ITPRA de David Huron (2006). Porém, caso o jogador erre a escolha, as sonoridades do game continuam normalmente Essa inversão de expectativas pode ter como objetivo gerar uma falha do sistema de Predição (P) desse mesmo modelo, visto que na mídia espera-se que haja uma sonoridade compensatória pelo sucesso, e não silêncio. Este é um padrão que se mantém em todos os games posteriores da franquia, utilizando o silêncio como uma sonoridade compensatória. Um exemplo pode ser observado em trecho do vídeo abaixo.



Neste artigo apresentei uma proposta de taxonomia para os sons do áudio de um game de acordo com suas funções, a saber, 1) reativos; 2) direcionais; 3) indicativos; 4) compensatórios. A princípio tratei dos sons “reativos”, que se tratam de sons que apenas reagem a um comando do jogador, como sons de pulo ou de passos. Em seguida, tomando como exemplo os games rítmico musicais, tratei do que intitulei sons “direcionais”, baseado na definição de Martin Stig Andersen de jogabilidade direcionada por áudio (audio-driven gameplay). A seguir tratei do que chamo de sons “indicadores”, quando o som de um game tem como função indicar a direção ou o posicionamento de determinado elemento do mundo virtual do game. Por fim, falei dos sons compensatórios, que são sons que indicam se uma ação foi bem-sucedida ou não em um game, função essa que pode ser traçada aos jogos eletro-mecânicos como o Pinball.


Referências

ANDERSEN, Martin Stig. Electroacoustic Sound and Audiovisual Structure in Film, 2010. Disponível em: <https://econtact.ca/12_4/andersen_audiovisual.html>. Acesso em: 20 jul. 2023.

BEACHUM, Alex. Outer Wilds: A Game of Curiosity-Driven Space Exploration. Dissertação de Mestrado. Faculty of the USC School of Cinematic Arts. University of California, 2013.

COLLINS, Karen. Game Sound in the Mechanical Arcades: An Audio Archaeology. The International Journal of Computer Game Research, v. 16, no. 1, 2016.

FARIAS, Vicente Reis de Souza; IAZZETTA, Fernando. O uso da música no game survival-horror Pesadelo – Regressão. Revista Brasileira de Música, v. 33, no. 1, pp. 361-383, 2020.

FORNARI, José. Gestural Controlled Virtual Percussion Instruments. In: SBGAMES, 2010, Florianópolis. Anais eletrônicos…: Trilha Artes e Design – Short Papers. Florianópolis: Sociedade Brasileira de Computação, 2010.

FRITSCH, Melanie. History of Video Game Music. In: MOORMANN, P. (ed.). Music and Game. Wiesbaden: Springer, 2013.

GRIMSHAW, Mark. The acoustic ecology of the First-Person Shooter. Tese de Doutorado. University of Bolton, 2007. School of Games Computing and Creative Technologies, 2007.

HAMBLETON, Elizabeth. Gray Areas Analyzing Navigable Narratives in the Not-So-Uncanny Valley Between Soundwalks, Video Games, and Literary Computer Games. Journal of Sound and Music in Games, v. 1, no. 1, pp. 20-43, 2020.

HAZEN, Michel. Exploring narrative complexity in Outer Wilds: A textual analysis on how user agency and a time-loop influence the narrative complexity. Dissertação de Mestrado. Dissertação de Mestrado. BA Eindwerkstuk Reparatie, 2020.

HURON, David. Sweet anticipation: music and the psychology of expectation. Cambridge: MIT Press, 2006.

MEDEIROS, Jerry Fernandes. Avaliação de Usabilidade e Jogabilidade em Jogos para Dispositivos Moveis. In: SBGAMES, 2015, Teresina. Anais eletrônicos…: Trilha Artes e Design – Full Papers. Teresina: Sociedade Brasileira de Computação, 2015.

MENEGUETTE, Lucas Correia. A afinação do mundo virtual: identidade sonora em jogos digitais. Tese de Doutorado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2016. Área de concentração em Tecnologias da Inteligência e Design Digital. São Paulo, 2016. 234p.

MESSIAS, José et al. Os Barões da Gambiarra: letramento digital e convergência em mods de Guitar Hero. In: Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. 43º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, 2020.

MILLER, Kiri. Schizophonic Performance: Guitar Hero, Rock Band, and Virtual Virtuosity. Journal of the Society for American Music, v. 3, no. 4, pp. 395-429, 2009.

TANENBAUM, Theresa Jean; BIZZOCCHI, Jim. Rock Band: a case study in the design of embodied interface experience. In: Proceedings of the 2009 ACM SIGGRAPH Symposium on Video Games (Sandbox '09). Association for Computing Machinery, New York, 2009.


Como referenciar este artigo:

YGLESIAS, Vinicius. Proposta taxonômica para as funções do áudio de games. Blog C4, Campinas: Nics; Unicamp, 25 jul. 2023. ISSN: 2764-5754. Disponível em: https://unicampc4.blogspot.com/2023/07/proposta-taxonomica-para-as-funcoes-do.html